segunda-feira, 3 de agosto de 2015

das bandeiras que eu não quero carregar



Meu pai é o penúltimo de 12 filhos, 9 sobrevividos. Minha mãe é a segunda de 4 filhas, 3 sobrevividas. Os dois não poderiam ter famílias mais diferentes, histórias mais diferentes. Mas desse povo todo aí, foram os dois únicos sem o que eu chamo de dependência geográfica. O que quer dizer que são pessoas que não se apegam ao lugar em que nasceram ou cresceram e podem viver em qualquer lugar e serem felizes assim, diferentemente de todos os meus 127 tios.

Isso fez com que eu crescesse longe da família expandida, o que é maravilhoso, porque família só serve pra torrar a paciência. Vanessa não gosta que encostem nela? Mas que menina insuportável. Vanessa não come bife? Mas que menina fresca. Vanessa não come carambola? Mas que menina pedante.

Vão pro raio que os parta, por favor?

Vanessa não queria saber de homem já bem novinha e "olha o que crescer em São Paulo fez com essa menina!!11", mas minha prima que já teve 8 maridos e um filho de cada um é o xodó da família. Quando eu parei de comer carne, era só pra irritar quem tinha que cozinhar pra mim, mas quando minha prima (outra, né? eu tenho mais de 50 primos) parou de comer carne, é porque se trata de um cerumano iluminado. E assim vamos.

De modos que eu não tenho nenhum problema em dizer que não gosto de muitas daquelas pessoas e não faço a menor questão de saber como vivem e de que se alimentam. A maior parte das pessoas eu não vejo há mais de 5 anos, alguns eu não vejo há 20, outros eu não vejo há 1 e cê veja aqui se estou preocupada? Não estou.

*****

Até os 25 anos, eu mal conseguia pesar 50kg. Eu chegava nessa marca algumas vezes, mas não era raro emagrecer sem motivo nenhum e ficar ali pelos 48kg. Minha família materna é assim, todo mundo fino, sem razão aparente. O mais legal era que eu tinha que passar por dois tipos de situação: as pessoas "de fora" viviam me torrando a paciência, dizendo que eu precisava me alimentar, que eu devia estar anêmica ou com distúrbio alimentar e dando palpite não requisitado sobre minha forma física o.tempo.todo. Na família, onde todo mundo sabia que eu comia como se não houvesse amanhã, toda refeição eu tinha que escutar o sermão "vai ficar igual sua tia", tia essa cujo nome não colocarei aqui, mas que teve que fazer redução de estômago sob risco de morrer por problemas de obesidade. CINQUENTA QUILOS e eu ouvia isso.

Eu tinha uns 19 anos quando comecei a trabalhar. Não tinha tempo pra nada e não tenho mãe-que-fica-em-casa, então não tinha comida feita se eu não fizesse. E, sem tempo, sem dormir é que eu não ia ficar. Alguns dias eu almoçava pizza de frigideira. Nunca menos que 3. Eu tomava 2 copos de leite e comia 4 pães no café da manhã. Cada refeição consistia de, no mínimo, dois pratos de comida. Cinquenta quilos. Até que um dia eu fui fazer as pizzas do almoço e não consegui terminar a segunda. Fui tomar café e não consegui comer o terceiro pão. Parei de repetir a comida. Imagino que tenha sido a entrada na vida adulta. O inconveniente foi ver o peso diminuindo e a pentelhação aumentando. VAI MORRER, VAI DESAPARECER. Todo mundo dava palpite e eu só tava lá vivendo. 

Foi a época em que eu descobri que era alérgica e a falta de apetite veio com tudo. Eu não conseguia comer. Eu comia quase nada, mas - ó que incrível - o peso começou a aumentar. com 21 anos eu bati a marca dos 54kg e as pessoas vieram me oferecer ajuda psicológica, porque eu estava uma baleia. "Pensa na sua tia, você quer ficar como sua tia?" Eu estava doente, entupida de corticoide sem nem saber o que aquilo era, sem entender o que era alergia, sem saber A QUE eu era alérgica, a saúde do meu coração estava comprometida, minhas articulações estavam sendo corroídas e todo mundo só se preocupava com o fato de que eu era uma baleia, com 54kg.

Remédio vai, alergia vem, com 25 anos eu pesava 52kg, tava todo mundo feliz, porque "graçazadeus você largou aquela magreza, né, fia?" e também porque "já pensou se você não parasse de engordar?". Acontece que eu parei foi de tomar os remédios, porque eles faziam com que eu me sentisse mal sem nem saber o motivo e não contei pra ninguém. O peso desceu de novo e todo mundo queria saber que dieta maravilhosa foi essa que eu fiz. Por mais ou menos uns dois meses. Depois era só o "fazer dieta faz mal pra saúde", "ser magra faz mal pra saúde", "minha filha, olha a finura dessas perninhas, esses osso saltando".

MAS QUE SACOOOOOOOOOOOOOOOOOO.

Só que minha alergia é aquela de saturação, sabe? Nessa época ela chegou no limite e eu pensei que fosse morrer. Não conseguia andar, respirar, me mexer. Eu sentia dores horríveis fazendo qualquer coisa. Eu só chorava e vivia entupida e foi quando a peregrinação pelo médico perfeito começou. Cada um me dava um corticoide diferente, que eu tomava por um mês e não melhorava. Eu não sabia AINDA o que era aquele remédio, que vinha mascarado por diferentes nomes terminados em ona. Um dia, ali pelos 29 anos, já 15kg mais pesada que no começo da história, eu tive uma dor no pescoço tão intensa que considerei me matar. Fui no ortopedista pra descobrir que eu estava com mononucleose. Por causa dos exames que eu fiz, descobri que estava com uma infecção por estreptococos ameaçando perigosamente meu coração, que meu sistema imunológico estava tão descontrolado que tinha comprometido 100% das minhas articulações e que a recuperação total era IMPOSSÍVEL.

Num é maneiro?

E com que as pessoas se preocupavam? Isso mesmo que eu estava chegando em 70kg.

:)

Fiz um LOOOooooOoooooNGo tratamento com antibióticos, benzetacil, antialérgicos aspiráveis, injetáveis e de comprimidos. Salvamos o coração, viva! Salvamos algumas articulações, viva! Salvamos o pulmão e a membrana interna do nariz, uhu! Ficamos com uma doença gêmea de febre reumática para todo o sempre, ahhhh :(. Nunca mais podemos ter dor de garganta na vida sem o risco de morrer, nossa que chato. Mas no processo ganhamos mais alguns quilinhos, totalizando 84.

MAS MINHA FILHA, VOCÊ SE PERDEU NA COMIDA, COMO FOI QUE VOCÊ VIROU ESSA MOÇA RELAXADA.

Olha, gente, não sei, viu? Como dizia um acupunturista muito profissional, deve ser porque eu não consigo me afastar de salames, mortadelas, picanhas e gorduras, vai saber, né? Mesmo que eu não tenha ingerido nenhum desses nos últimos 30 anos, nunca se pode afirmar nada conclusivamente.

*****

Hoje estou no meio de MAIS UM tratamento pra alergia, que tem se revelado bastante promissor. Completou um ano inteiro na minha vida sem corticoide desde 1999? Não. Eu só tenho um rim, o que dificulta todo o processo de desinchamento? Sim. Eu me alimento de forma saudável e pratico exercícios? SIM. Quem olha pra mim percebe isso? Não mesmo. Eu tenho alguma ideia do meu peso atual? Não, já que eu não subo na balança nem se for obrigada.

E o que acontece? Todo mundo quer me dar palpite sobre formas de tratar alergia (AHAHHAHAHAHAHAHA BITCHES, PLS) e dietas e emagrecimento.

Poxa, brigada????????

Como eu nunca fui "normal", eu não sei como é viver sem pessoas perturbando sobre a forma física. Você é magra, você é gorda, as pessoas acham que automaticamente adquiriram direitos sobre sua imagem. É um pesadelo.

E é por isso que eu evito AO MÁXIMO encontrar minha família. Não tem uma vez que eu não escute "eu te avisei que você ficaria como sua tia". Não importa que eu use roupas de loja de departamento de tamanho """""normal"""", se eu não uso 38 eu sou uma baleia candidata a ter que ser removida de casa por um guindaste, pela parede quebrada. Se de todos os assuntos do mundo, o único que a família tem é esse, não vejo uma razão pra querer ver essas pessoas. Se é pra cozinharem batata e falarem que não é pra mim, porque gorda não come batata, eu não quero comer com essas pessoas. Se falarem que vão fazer salada e um grelhadinho pra me ajudar, eu já vou querer sair e comer uma coxinha, mesmo que eu não esteja com vontade nenhuma de comer coxinha. COMPREENDE?

*****

Aí assim. Eu estava vendo a novela das sete semana passada e TODO DIA, sem pular um, a véia da novela enchendo o saco da Maria Casadevall (?) porque ela é magra. Eu cronometrei e ela nunca fala por menos que um minuto inteiro coisas horríveis, dá apelidos grosseiros e insiste que magro é ruim. A menina passa metade das cenas em que aparece comendo, todo mundo já viu QUE ELA COME, ela mesma diz "eu sou assim, véia" e a véia não cala a boca. Posso não ser magra neste momento, mas fico profundamente irritada pelo meu eu do passado e não entendia por que MAIS.

*****

Depois que eu descobri que era feminista, eu juro que tentei ler a respeito. A internet tá aí, cheia de gente falando o que quiser sobre o assunto, parecia fácil. Não é. Eu não leio textos que coloquem x no lugar dos artigos, porque eu duvido da inteligência da pessoa (já falei disso aqui ou só no feici?). Eu não leio quem é radical e fala que mulher trans não é mulher. Eu não leio gente que diz que somos todas irmãs, mas ao vivo me chama de biscate, porque seu marido disse que meu cabelo era bonito.

Porque tem mais essa: eu conheço pessoalmente muito famoso de internet. E se não é meu conhecido direto, é amigo de algum amigo próximo que eu tenho. Então eu sei da vida das pessoas famosas da internet no off. A fia virou um ícone do feminismo sado-maso, mas na vida real se fantasia de princesa disney, repara na saia curta da amiguinha e diz que mulher que conversa com homem casado não vale nada. Tá bom então, né, colega?

Aí tem esse blog que 90% das minhas amigas amam, mas eu conheço as escritoras bem demais pra ser capaz de ter qualquer reação positiva, de modos que não leio. Vez ou outra alguém cola um link no meu mural ou compartilha no facebook e eu não clico. Se alguém tenta discutir comigo em particular, eu peço um link no naofo.de e faço o esforço. Mas contrariada.

Uma das meninas que escreve é gorda, então muitos posts têm, além do feminismo, o problema da sociedade com o peso alheio. A menina escreve bem até, eu não chego a desgostar dela enquanto pessoa (apesar de ter uma pequena rusga pessoal com essa indivídua por problemas do passado que nem têm mais importância). Eu até leria o que ela escreve, se não tivesse que ler os outros posts do blog. Mas prefiro não ler e sigo minha vida.

Um dia uma pessoa falou "mas ela é feminista e gorda, você tinha muito que solidarizar!".

Primeiramente: miga, vamos trabalhar essa sutileza ao falar da forma física da amiguinha que não pediu sua opinião? Vamo? Bora?

Segundamente: desde quando eu tenho que apoiar alguma coisa nessa vida só porque eu me encaixo na característica? Cê sabe o dia que eu vou fazer campanha pró gordura, curvylicious ou qualquer coisa do tipo? NUNCA.

E, sabe porque? Porque eu não estou nem um pouco preocupada com o corpo que não é meu. E nem com a opinião dos outros sobre o meu. Se um dia alguém me perguntar qual é a bandeira que eu levanto, eu vou responder: a bandeira do PAREM DE OPINAR SOBRE O CORPO DAS MULHERES. 

Certo?

Então fica a dica pra você que disfarça de ~preocupação com a saúde~ quando você diz pra sua amiga que ela está gorda ou magra. Ela tem espelho em casa. E tem mãe ou tia ou vó, alguém já está dando palpite na vida dessa pessoa.

Nunca fale com alegria "nossa, mas você emagreceu!!11", porque a pessoa pode estar doente e não vai querer estourar sua bolha. Nunca diga com pesar "você deu uma engordada, né?", porque ISSO.NÃO.É.DA.SUA.CONTA.

Compra umas plantas, adota um gato, assina big brother. Se você curte tanto assim cuidar da vida alheia, faça isso com propriedade.

E nunca, jamais, NEVER, me pergunte "tem certeza que vai comer isso?". Porque se eu não tiver, a comida vai parar no meio da sua testa.

A saúde das miga é dela e o problema não é seu. O corpo das miga é dela e não é problema seu. Canta como se fosse mantra e não esquece mais.

:*