quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

DARWIN AWARDS - PARTE I

Quando eu tinha 10 anos e acordei da minha cirurgia no rim, ainda sem saber direito o que tinha acontecido, eu me lembro do médico dando meia dúzia de instruções:

- nunca mais vai poder esporte de contato (eu tava pedindo pra entrar no judô), vai ler rótulo de tudo até o último dia da sua vida, vai controlar o sódio, nunca mais vai comer miojo e beber nada diet.

Fora o miojo, em épocas sem vaca (até a vaca magra tava em falta), o resto foi até simples de seguir.

Eu só descobri que E NÃO É SÓ ISSO quase 15 anos depois.

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Tarra a vaneçinha de 24 anos já trabalhando na universidade, dona e proprietária do HC, que vem a ser um hospital de referência em oncologia. Aí, dentro da própria comunidade universitária, começou uma campanha de doação de medula óssea. Mano, ó que daora? Doar um pedaço do ser corpo em vida e salvar outra vida? Poxa vida, quero. Convenci alguns outros calegas e a van da doação vinha até a gente.

Beleza, tava todo mundo lá feliz e sorridente, preenchendo formulários, furando dedinhos, sangue na centrífuga. JÁ QUE TAMO AQUI, q q cêis acham de doar sangue?, disse a moça do hospital. Bora. "mas, moça, eu tenho aqui uns problema mental e vou precisar de acompanhamento de perto e que alguém avise minha mãe dois prédio pra lá" pois eu vô tá desmaiano, mas vamo. Chamava um, chamava outro, chamava mais outro e eu lá, mofando na espera. Ni qui finalmente alguém vem conversar comigo.

- olha, lynda, tem uma anemia significativa aqui, não vai poder doar não.

- MEU ANJO, VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO???? EU SOU A MULHER MAIS BEM NUTRIDA DO BRASIL!

(Mentira, eu só contestei que tinha alimentação bem saudável e não era possível). Me pediram então pra ir ao HC alguns dias depois, pra fazer os exames numa centrífuga diferente e tal. Fui.

Chegando lá, não falei nada, fiz a doida, como se tivesse indo casualmente doar sangue. Preenche ficha, ouve explicação, responde pergunta, fura dedinho, espera a centrífuga, vê todo mundo indo pra uma sala, é chamada em outra............ e

- moça, vamo furar outro dedinho pra confirmar um negócio aqui?

Bom, anemia de novo, números bem baixos de novo.

Cheguei em casa trabalhada no COMÉ QUE PODE, MEU DEUS DO CÉU, marquei endocrinologista e, só deus sabe por que, nefrologista. Endocrinologista foi um erro. Importante frisar que, naquele tempo, eu tinha um corpo de 54kg, cheguei com uma reclamação BEM ESPECÍFICA de investigação de anemia e tive o que? Indicação de dieta de pouca caloria. "Moço, prestenção aqui um minuto, eu não quero emagrecer, eu quero saber por que tão me falando que eu tô anêmica!". E ele respondia de forma muito eloquente "gorda dieta gorda dieta... gorda. dieta! gorda dieta gorda dieta?". Eu não estudei medicina, mas eu muito acho que TIRAR COMIDA da pessoa anêmica não é assim a forma mais correta de lidar com o problema, especialmente sem nem um mísero hemograma, mas quem sou eu, não é mesmo?

Já no nefrologista, eu aprendi coisas novíssimas a meu próprio respeito: o paciente renal (que é a pessoa que tem qualquer especificidade no sistema urinário, estando ele perfeitamente saudável, inclusive), tem restrições pra vida toda. E isso inclui a ingestão de proteínas, especialmente carne e legumes. Mas legume mesmo, não os vegetais que cêis chamam de legumes. Geralmente, as pessoas sofrem uma vida toda pra fazer dieta pobre em carne e feijão, por exemplo, e eu sou agraciada com um corpo que naturalmente rejeita essas comidas. Por um lado, eu e meu rim não sofremos com a privação de proteína, mas meu sangue sim. Pessoas com um rim têm absorção doida de nutrientes e vivem eternamente no limite da anemia, de modos que somos PROIBIDOS de doar sangue. Numa emergência, quem sabe? Mas com um alto custo pros nossos corpinhos. Então, numa situação normal, não pode e fim. E não adianta tentar enganar o pessoal do hemocentro, que o corpo é mais esperto que você e vai avisar que o sangue não tá em condição de ser doado, toda vez.

Eu ainda acertei o combo breaker do darwin awards, que é a alergia à proteína do leite (meu corpo ODEIA proteína MESMO). O leite ajuda o cerumano normal a fixar o ferro. Eu.não.tomo.leite. kkkkkkkkkkkk

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Aí o que aconteceu? Em 2019 eu passei a sentir sono enquanto fazia exercício. Mais sono que o normal, que já é muito. SONO. Eu dormi em cima da bicicleta ergométrica kkkkkkkk. Mas deve ser porque eu tô exausta mesmo, certeza. Mas aí, várias parte do meu corpo começaram a dar defeito simultaneamente, tava parecendo painel de nave espacial sob ataque, e eu fiz uma coisa RADICAL: fui no médico.

A médica me pediu oito bilhão de exame e, para a surpresa de zero pessoas, tava tudo realmente uma merda. E uma anemia assim, SUAVE (não). Taca vitamina na pessoa, manda ir num médico, em outro, acaba indo em hematologista (eu nem sabia que EXISTIA hematologista), faz reposição de ferro agressiva toda semana, não adianta, sobe plaqueta, vê a morte chegando cada vez mais perto, vai procurar a razão e acha uma forte candidata. Não vem ao caso, mas o importante é que: de março a setembro, tentaram de tudo até a conclusão que ia ter que fazer uma cirurgia grande. PROBLEMA: anemia.

Se não fizer, morre de anemia, se fizer, pode morrer por causa de anemia. DAORA A VIDA.

Aí tem lá 84 médicos pra explicar a cirurgia, o que vai acontecer antes, durante e depois, e todo mundo batendo numa mesma tecla: vai precisar de transfusão.

Até aí tudo bem, que eu não tenho problema nenhum com a ideia de transfusão, mas a preocupação dos médicos era que a coisa fosse tão feia que nem a transfusão ia dar jeito.

Então o combinado é que eu chegaria ao hospital 12 horas antes, faria transfusão, superdose de ferro, a cirurgia, transfusão durante, nova superdose de ferro e acompanhamento pra avaliar se transfusão depois também, superdose de ferro de novo.

Foi aí que começou a choradeira.

Por que eu passei a minha vida adulta inteira tentando encontrar uma forma de doar sangue, já que eu sou tipo O, mas eu nunca consegui. Eu passo um tempo maior do que seria saudável tentando convencer pessoas que nunca doaram a doar, mas é difícil. Eu me ofereço pra levar, segurar a mão, alimentar e devolver em casa, porque eu mesma não posso doar. E aí, naquele momento, a constatação de que não apenas eu não ia poder doar, mas ia GASTAR. Sangue O. Em plena pandemia, num momento de bancos com baixa histórica de sangue.

Bom.

No fim das contas eu não precisei do sangue todo que foi previsto (mas precisei de 83 mil bisnagas de ferro e puta que pariu, nunca precisem tomar 25 noripurum em dois dias, acreditem em mim). E minha anemia parou de piorar pela primeira vez em 10 meses, o que já é uma boa notícia. No começo de dezembro eu tava com quase zero de ferro no sangue e vocês também não queiram saber como é sentir essa alegria, viu? Agora já deu até uma subidinha e minhas bochechas voltaram a ter cor e meu cabelo tá lentamente voltando a parecer cabelo e não arame. Eu ainda sinto 83% mais sono que o normal, mas convalescer de uma cirurgia que abre você no meio (literalmente) e arranca metade do conteúdo do seu abdômen é mais cansativo do que parece. Mais triste ainda é esperar a boa vontade dos 47km de intestino de se reorganizarem no espaço extra, mas deus no comando.

Mas a moral da história é: DOEM SANGUE. Se não tivesse sangue disponível no banco, eu nem poderia ter sido operada e podia morrer a qualquer momento. Vai lá, bota uma roupa bonita, a máscara combinando e DOA. Em qualquer lugar onde você more, qualquer cidade, qualquer tipo sanguíneo. Se for O e negativo, VAI AGORA. Pensa na alegria que vai ser! Lembrar todo dia que tem alguém por aí que tá vivo exclusivamente porque você doou uma parte do seu corpo que não te fez falta? Só pode ser mágica. Bota na resolução de ano novo e vai.


Pra quem for de Curitiba, só agendar aqui: