quinta-feira, 5 de outubro de 2017

George

(enquanto eu tento corrigir minhas vibe, fiquem com esse textinho que postei no facebook)



Aqui perto tinha um restaurante chamado George's, de um homem coincidentemente chamado George, que também vinha a ser o cozinheiro do estabelecimento.
A primeira vez que eu fui comer lá, eu fiz o ritual de sempre: perguntei pro George - ainda sem saber que ele vinha a ser o próprio - se ali era possível comer sem carne e leite. George me disse que sim e imediatamente assumiu que eu era vegana. Uma conclusão que faz até bastante sentido, se a gente pensar bem.
Demorei mais de um mês pra voltar naquele restaurante, mas mal eu passei pela porta, antes que eu dissesse oi, George me recebeu de modo efusivo, já listando que parte do cardápio do dia eu podia comer sem medo. Ele não esqueceu.
Quanto mais eu ia lá, mais ele criava pratos diferentes e anunciava com orgulho que naquele dia tinha hambúrguer, estrogonofe ou vatapá cem por cento vegano, pra eu comer sem me preocupar. Depois de um tempo, tinha até sobremesa "segura" e eu nunca tive coragem de contar pra ele que eu não gostava de doce. Porque George parecia sempre muito feliz em agradar.
Eu tinha uma amiga, dessas que são consideradas muito bonitas pro padrão atual vigente de beleza. E era evidente que essa ~amiga~ gostava muito de passear comigo nos dias em que precisava melhorar sua auto-estima.
O único lugar aonde ela não gostava de ir comigo era no George's. Ela reclamava que se sentia invisível quando eu entrava lá (e parece que ela não estava acostumada com essa sensação que eu conheço muito bem). Ela dizia que ele devia ser apaixonado por mim, que essa era a única explicação. Mas não era. Como muitas pessoas que nasceram bonitas, essa menina não conhecia a dinâmica de ser gentil com uma pessoa e receber gentileza em retorno. George conhecia pouco, mas acho que era apaixonado pelo restaurante e pelas comidas e pelas pessoas todas que saíam de lá sorridentes, dizendo que estavam entupidas, porque a comida era boa demais.
E era mesmo.
E era um lugar tão feliz que você podia comer num quintalzinho cheio de florzinhas e árvores com frutas. E podia sentar num banquinho embaixo do limoeiro e roubar amoras na lateral do terreno. E as paredes eram cheias de quadrinhos com trocadilhos de nomes de filmes com vegetais. O quiabo veste prada. Edward mãos de cenoura. Kiwi Bill. E o coentro levou. Era campanha publicitária de um hortifruti, parece. Mas todo dia tinha alguém novo no bufê encarando as paredes e dando risada.
Mesmo quando o dia não estava muito grande coisa, a gente entrava no George's e a vibe já mudava. Até mensagem de pessoas imitando golfinhos eu recebi enquanto pensava na minha vida debaixo do limoeiro. E ri tão alto que achei que todo mundo viraria com olhares julgadores, mas não, todo mundo era feliz nas mesinhas do George's e não precisava olhar feio pra ninguém.
Faz mais ou menos um ano que ele morreu. O dono. E o restaurante também. George morreu de repente, eu ouvi dizer. Fecharam o restaurante e nunca mais abriram. O letreiro ainda está lá, com a promessa de comidinha caseira e ambiente feliz, num tom de laranja tão horroroso que fez com que eu levasse anos pra entrar. O que é uma pena. É uma pena que eu tenha demorado tanto pra ir, é uma pena que ele tenha morrido tão cedo, é uma pena que a porta esteja fechada pra sempre. O George era mesmo a alma do lugar e, quando ele se foi, o restaurante acabou também.
Tem dias que eu tenho saudade da pessoa que eu nem conhecia direito. Tem dias que eu tenho saudade da comida. Tem dias que a saudade é de sentar lá numa mesinha ou debaixo do limoeiro, de ser recebida pelo som suave de uma voz berrando com sotaque do centro-oeste que hoje a comida tá sem coentro e que tem batata frita, porque quem é que consegue sobreviver a uma segunda-feira com coentro e sem batata frita?
Tem dias que eu tenho saudade de acreditar que atravessei um portal pra uma cidade do interior, um quintal de casa de vó, no domingo, em que só o fato de você sentar ali por meia horinha podia fazer o mundo consertar sozinho quando você voltasse pra realidade.