segunda-feira, 28 de março de 2016

mas você também, né?


EU TAMBÉM O QUÊ?

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No post passado (que toda a população da internet ignorou solenemente, estou #chatiada) eu estava falando, entre outras coisas, sobre a percepção de sucesso.

Nossa sociedade percebe sucesso de umas formas bem estúpidas, na minha opinião. Daí esse mar de frustração existencial que a gente vê à nossa volta.

Por exemplo:

Minha mãe queria ser pianista, é engenheira.
Minha irmã queria se estilista, é antropóloga.
Meu irmão queria ser músico, é advogado.
Eu queria ser escritora, sou administradora.

Tem como ser feliz?

Não tem.

(Aí vem aquele povo do "segunda não é ruim, seu trabalho que é uma bosta" e quem foi que disse o contrário, more?)

Mas a sociedade tenta me convencer de que eu sou um sucesso, porque eu consegui algumas coisas na minha vida, tipo: passar em um concurso com 180 candidatos por vaga (eu passei em 3, mas só trabalho em um lugar, né?), por conseguir me comunicar na minha própria língua (OITO PORCENTO da população!) e em mais uma fluentemente em mais umas 5 se minha vida depender disso, por ter uma casa em uma boa vizinhança (e eu não estou falando aqui da casa dos meus pais, já que a casa tá no meu nome também), por ter acesso à saúde e educação, por fazer parte de um seleto grupo de estudantes de pós graduação em engenharia, em uma universidade federal e por aí vai.

GRANDES BOSTA.

Isso aí traz realização e felicidade? Pra minha pessoa: não.

Eu tenho coleguinhas que têm um pouco menos do que isso e acham que chegaram no topo da realização existencial e fico bastante feliz por eles, né? Mas, pra mim, isso é o mínimo pra dizer que não estou na terra apenas gastando recursos naturais.

Por exemplo: eu sempre soube que queria fazer alguma coisa artística na minha vida. Eu me virava com o piano desde bebê, praticamente. Sempre tive máquinas fotográficas, sempre gostei de desenhar, pintar, escrever. Por um tempo, eu tentei ser atleta e ganhei todas as medalhas de todas as competições que eu participei, qualquer que fosse o esporte, em grupo ou individual. Mas tacaram um teste vocacional na minha cabeça e uma das ~aptidões~ era engenharia. Talvez isso tenha sido influenciado pela escola que eu estudava, em que tentavam transformar a gente em mini engenheiros desde antes da oitava série. Tenho culpa que também sou boa em matemática? Não tenho.

Mas a sociedade me fez pagar.

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99% dos problemas que eu tive no ano passado foram causados pelo mestrado. Eu trabalho com educação superior há tempo suficiente pra saber que mestrado é realmente uma época difícil na vida de qualquer acadêmico. É a PIOR época. Tudo que você tem que cumprir e o tempo que você tem pra isso tornam esse período o pior da sua vida. 

Isso se tudo correr bem.

Eu, enquanto minha própria pessoa, tive dois grandes problemas extra:

- ser mulher
- ser não-engenheira

E mais um terceiro:

- conhecer todo o corpo docente.

Esse último é uma desgraça que já tinha acontecido antes. Professores conhecem você profissional e pessoalmente, conhecem sua família, sabem da sua vida, então acham que podem acrescentar essa informação na hora de tratar com você e te avaliar. "Sim, eu fui rude, mas é que você já me conhece, não preciso pisar em ovos com você". MAS EDUCAÇÃO PRECISA SIM.

Então vamos nos ater apenas àqueles problemas menos evitáveis.

~ SER MULHER~

Na academia, isso é uma afronta por si só. Como assim, você, parideira, cozinheira, arrumadeira ÔZA (do verbo ozada) estudar e permanecer roubando vagas masculinas no ensino pós graduatório? ESTÁS LOUCA?

Sei que em 2016 tem gente que chama de vitimismo e coitadismo, mas seriam essas pessoas mulheres em lugares que até menos de VINTE anos atrás eram predominantemente ocupados por homens? Porque eu VI minha mãe fazer faculdade de engenharia no começo dos anos 90. Nas 3 engenharias disponíveis na faculdade, não dava pra encontrar DEZ mulheres ingressas por ano. No ano que eu fiz vestibular na mesma faculdade, 6 anos depois, o número de meninas não chegava a um terço. Eu trabalho com cursos de engenharia (e arquitetura) até os dias de hoje e vos digo: em alguns deles até chega a meio a meio. ALGUNS. Mas o corpo discente é predominantemente masculino, porque em elétrica e mecânica a predominância ainda é masculina. Dez anos atrás eu fiz especialização em mecânica e só tinha eu de mulher na sala. Entre os professores, a média é a mesma. Eu faço a inscrição dos concursos (EU TÔ NA CADEIA INTEIRA, FIOTESSSS, eu trabalho e estudo com isso, ninguém barra) e até ano passado não dava meio a meio. Este foi o primeiro ano em que se inscreveram mais mulheres do que homens, mas para engenharias mais "recentes", como a de produção. Que inclusive é a minha. Onde entramos na exata proporção 50/50. 

Agora cê pensa o que isso representa.

Graças ao senhor bom deus, eu me libertei das garras desse amor gostoso do machismo, praticado até mesmo por mulheres, quando eu troquei de orientador e minha vida mudou. Primeira vez na vida que me sinto respeitada enquanto estudante de engenharia: desde janeiro deste ano. Um feito pra quem tá nesse ambiente desde 1994.

Ryzos.

A engenharia de produção é filhotinho de dois outros cursos: administração e engenharia mecânica. De modos que em algumas áreas bem específicas da administração, especialmente quando se fala da parte industrial, os professores costumavam ser engenheiros. Hoje em dia sei que tanto na área industrial quanto na matemática muitos engenheiros ainda fazem parte do corpo docente. Agora cê imagina no final dos anos 90 os cursos sendo inundados de mulher? O meu tinha uma proporção de meio a meio, sendo que a esmagadora maioria das meninas escolhia marketing ou RH quando chegava a hora de dar um rumo pra ênfase. A imensa minoria - eu entre eles - ficava com finanças, produção ou negócios internacionais.

Já ali dava pra sentir o machismo. Em qualquer engenharia (e em algumas áreas da administração, já que eu acho que não existem mais ênfases), em algum momento, você vai escutar durante uma explicação mais complexa:

- isso aqui não é aula de corte e costura.

De 1998 até hoje, eu perdi as contas de quantas vezes escutei isso. "Quando você ler ITA, não se trata do instituto de tricô de arapongas!". São poucos os professores que passam incólumes por essa frase. O infeliz prefere tentar diminuir os ouvintes que se propor a fazer a turma toda compreender o conceito. Prefere semear a ideia de incapacidade de quem está lá pra aprender que se desafiar a ensinar. Acho icônico.

Ano passado, quando um professor perguntou se era difícil compreender o conceito porque a gente achava que estava numa aula de corte e costura, eu respondi "mas você sabe costurar, profe?".

- como assim? o que isso tem a ver?
- nada, ué. corte e costura não tem nada a ver com a aula, mas você usou o exemplo, então eu pergunto, você sabe costurar?
- não, CLARO que não.
- então não fosse existir alguém que faz esse trabalho, você andaria com um tecido amarrado com barbante pela rua?
- não tô entendendo!
- se todo mundo tem que ser engenheiro e se lembrar que isso é muito melhor que ser costureiro, no caso de as pessoas largarem a função de corte e costura pra produzir outras coisas melhores que roupas, você abdica de se vestir ou se enrola nuns pano e amarra com barbante?

A pessoa riu e ~voltou pro assunto~.

Mas tô errada? Mania insuportável que engenheiros têm de diminuir qualquer outra profissão que não seja a deles ou de achar que quem está ca-gan-do para números não é inteligente. 

Tem que ter paciência.

Donde chegamos em

~ SER NÃO ENGENHEIRO ~

E, veja bem, não é "não ser engenheiro", é ser QUALQUER COISA que não engenheiro. Dá vontade de perguntar se a pessoa ia viver de luz, se limparia a própria rua, se faria a própria manteiga. Se ninguém estivesse disposto a cozinhar, limpar, jardinar, produzir arte, artesanato, e fazer toda a infinidade coisas que tornam a vida rica, o engenheiro estaria disposto a acumular funções, pra que o mundo fosse feito de engenheiros e fosse totalmente prático e horrível ao mesmo tempo?

Acho que não.

Mas desde que eu saí da graduação, todo meu tempo acadêmico foi dispendido em aulas de engenharia, por engenheiros, para engenheiros. Se você não me perguntar, você não vê a diferença. Tanto que eu passei numa prova de cálculo para engenheiros e tive uma nota bem na média, com a diferença que eu:

- não me graduei em engenharia
- estava formada havia mais de 10 anos
- e não estudei pra prova

diferentemente de todos os coleguinhas.

UÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉ?????????

Passo o dia conversando com engenheiros ou aspirantes a. Em algum momento, alguém me pergunta onde eu fiz faculdade, eu respondo e PÃ (rap do windows). "Mas não tem curso de engenharia lá!". Eu sei, more, não sou engenheira. E a pessoa não compreende o conceito. 

MÁ COMO QUE NÃO É ENGENHEIRA SE ENTENDE A SUPREMA LÍNGUA DA INTELIGÊNCIA??????

Olha, cara. Olha.

Mas na sala de aula a gente tem que passar pelo eloquentíssimo ritual de dizer onde estudou, o que estudou, etc etc etc. No exato minuto que eu digo as palavras "formada em administração", o ouvido dos engenheiros traduz para "ser inferior que vai dificultar minhas aulas sendo o gordinho do livro A Meta". E daí pra frente eu tenho um total de ZERO dias de sossego, quando o professor explica um conceito simples e olha pra mim, me chama pelo nome e pergunta:

- entendeu, Vanessa?

Entendi sim, quer que vá aí na frente explicar pra todo mundo de um jeito melhor que o seu ou cê tá de boa?

Quando chega o momento de apresentar seminários na frente da sala, não é raro todo mundo dizer "noooossa, agora que você explicou eu entendi" na frente do professor. Geralmente aquele que me perguntou se eu entendi. Mas o orgulho dO ENGENHEIRO jamais permitiria dizer que uma sub qualidade de pessoa conseguiu compreender e explicar um conceito de forma inteligível, de modos que eu tive um festival de nota B durante o mestrado. Que me fez chorar muito, sejemo sincero, mas considerando que sou mulher-não-engenheira, eu devo me orgulhar da honraria.

Agora eu tenho um orientador engenheiro-porém-gestor e um coorientador de sociais aplicadas - que é a melhor corrente, já que é um mix de humanas e exatas, OUSSEJE, gente inteligente em qualquer frente - então meu mundo é bem mais feliz. Orano pra que prospere.


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Aí eu tava lá revisando meu trabalhinho qualitativo AND quantitativo (num falei que é melhor?), quando alguém fala que sei lá quem tá fazendo mestrado em publicidade. Senti uma pontinha de inveja por achar que qualquer curso que exija criatividade deve ser melhor que o meu, mas continuei minhas leituras. As pessoas me puxaram pra conversa, falando que a criatura em questão está sofrendo muitíssimo os horrores do mestrado.

- sei como é, mestrado é um trabalho árduo.
- ah, eu acho exagero, nem é em engenharia!
- não tem problema, pesquisar é sempre complicado e cansativo, tanto faz a área.
- mas você parece que nem sofre!

Mano, em que caverna essa pessoa está vivendo?

- oloco, se isso não é sofrimento, eu prefiro nem ser apresentada.
- mas é que a menina só reclama todo dia e...
- MANO, MESTRADO É UMA DESGRAÇA MESMO, ABRAÇA ELA!
- vai dizer que você sente dificuldade?
- mas mddc, claro que sinto. é por isso que eu estudo tanto.
- mas você também, né?

Eu queria saber EU TAMBÉM O QUÊ?

Sou trouxa e permaneço fazendo coisas de que não gosto, só porque é o que todo mundo queria?

Sou trouxa e tenho que me sentir agradecida por fazer parte de uma minúscula parcela da população nacional e até mesmo mundial que se pós-gradua? 

Sou trouxa e deixei o inimigo perceber que faço sinapses de acordo com o esperado pela nação e em vez de ser feliz assoprando dente de leão e soltando bolhinha de sabão eu gasto minha vida estudando?

Sou trouxa e ingressei num curso de universidade pública, que parece ser a melhor coisa que pode acontecer na vida de uma pessoa, mas é tudo mentira porque os maiores egos do mundo estão enfiados nesses lugares?

Sou trouxa e já tinha me convencido a passar o resto da minha vida na burocracia, alimentando minha alma com blogs, máquinas fotográficas, desenhos, decoração e desfiles de moda nos limites do meu quarto, pra fingir que sou realizada enquanto pessoa?

Jamais saberemos.

Devo só dizer que sou muito ressentida por essa percepção de inteligência que se tem de mim, porque é um fardo muito pesado pra carregar. Todas as pessoas """""""""não inteligentes"""""""""", das redondezas, de quem ninguém esperava nada, estão seguindo seus sonhos. Enquanto eu estou presa nessa desgraça do seguro-almejável porque eu sou inteligente demais pra desperdiçar.

Puta merda, viu?