sábado, 6 de julho de 2013

flashed before my eyes


1- a culpa não é minha;
2- eu não sou idiota;
3- você não sabe como vai reagir a determinada situação até que ela aconteça com você, nas mínimas variáveis;

Eu fui assaltada.

Não foi a primeira violência que eu sofri na vida. Minha mãe já teve toda a mudança roubada, arma na cabeça, comigo na barriga. Já tentaram me sequestrar. Já roubaram metade das coisas da minha casa enquanto minha família dormia e isso mal faz dois anos. Eu lembro de pensar desde criança em como é possível uma pessoa, que é como eu, feita da mesma coisa que eu, me botar medo. Como é que pode? De onde vem esse ímpeto? Por que alguns têm e outros não? Sempre me incomodou isso e eu sempre fui paranoica. Piorou muito depois da invasão da minha casa enquanto eu dormia. A ideia de que alguém foi até meu quarto, entrou, mexeu, fechou a porta, levou coisas minhas embora... É impossível de superar.

Eu sempre fui educada pra me prevenir. Carregue a bolsa assim, se defenda batendo aqui, posicione seu braço lá se alguém te atacar, faça isso, faça aquilo, não reaja, não ande sozinha à noite, entre no carro e trave a porta, não use roupa curta, não chame a atenção, blábláblá. É aquela história, né? A sociedade me ensina a me proteger em vez de ensinar as pessoas a não.praticarem.violência.

Então, embora fosse meu direito, eu não estava andando desligada pela rua. Não estava escuro. Não era um lugar desconhecido. Eu estava vestindo jeans e suéter, um tênis arrebentado pelo uso constante, completamente em desacordo com o resto da roupa, pra não ter que carregar mais uma coisa academia a dentro. Por mais que meu estilo de vestir possa chamar a atenção pela completa falta de compromisso estético, jamais chamaria a atenção por ostentação ou refinamento. Ainda que fosse totalmente direito meu. Minha bolsa é dessas lojinhas pequenas, nem uma imitação de logotipo famoso tem. E minha bolsa de ~ginástica~ é só uma sacola cheia de corações. Nada demais. 

Minha academia fica numa esquina de duas ruas que levam nada a lugar nenhum. É um cul-de-sac de mentirinha, porque tem saída. Então 100% das pessoas andando por ali estão.indo.na.academia. Todo mundo saído correndo do trabalho, em roupas de moletom, tênis, bicicletas. Não soou nenhum alarme o menino de calça preta e blusa cinza, com o capuz na cabeça. O frio estava congelante e praticamente todos os meninos exibiam o mesmo visual, nas mesmas cores.

Era 17:20h. Apesar de o sol se por cedo nessa época do ano, o dia estava claro. A rua estava cheia de gente chegando e saindo. Eu parei o carro onde eu paro praticamente todos os dias. Eu olhei quatrocentas vezes se desliguei as luzes que eu nem tinha ligado, se tranquei as portas que nem tinha destrancado. Se não estava bloqueando nenhuma garagem. Se não estava perto demais do carro da frente. Exatamente como eu faço todos os dias. Uma bolsa num braço, outra no outro, segurando a calça que estava caindo, vejo uma pessoa fazendo a volta na porta da academia e vindo na minha direção. Super normal, porque eu estava no meio do caminho entre uma calçada e outra, no meio da rua.

- Sem correr e sem gritar, senão te mato.

O que? Como que é? É piada? É alguém que eu conheço e não reconheci que está fazendo uma brincadeira? Não era brincadeira.

- É isso mesmo, tudo que tem valor dentro da sua bolsa, sem gritar e sem pedir socorro, senão eu te mato.

A mão dentro do casaco, uma bicicleta entre as pernas. Eu pensei "Não posso chutar, porque não vou acertar nele. Talvez não esteja armado, mas e se estiver?". Ele era menor que eu e eu considerei bater no rosto dele com um soco. Cairia com a bicicleta e demoraria pra levantar, eu sairia correndo os 5 passos que faltavam pra entrar na academia.

- Tá achando que é brincadeira? Tem uma pessoa atrás de você, se tentar alguma bobagem, te mato.

Olhei, tinha mesmo outra pessoa.

- FICA DE OLHO, PORQUE TÁ GARANTIDO AQUI. Para de enrolar e dá tudo de valor que tem na sua bolsa ou eu te mato.

E foi nessa hora que eu entendi quando as pessoas dizem que a vida passou diante dos olhos. Eu não consigo fazer ninguém entender a quantidade de pensamentos diferentes que eu tive nos 5 minutos que duraram essa história.

Cada vez que ele dizia que ia me matar, eu tinha certeza de que ia mesmo. Rosto descoberto, que eu poderia reconhecer. Minha relutância em entregar minhas coisas. O curso natural dos eventos: ele ia fazer o que? Pegar o que eu tinha e ir embora? Como se asseguraria de que eu não estaria seguindo? Ele ia me matar. Mas eu não via a arma, então eu achei que minha melhor chance seria derrubar o imbecil da bicicleta com toda a minha força, torcer pra ele rachar a cabeça no chão e correr.

A única pessoa que presenciava a cena, em vez de chamar a polícia, chamar ajuda, chamar alguma pessoa forte com anilhas, todas as pessoas do mundo, qualquer pessoa, apenas se escondeu. Ninguém vai me ajudar, ele vai me matar.

Me perguntei se ele levaria meus documentos. Quanto tempo levaria até alguém sair e me ver no chão. Se alguém me reconheceria, se encontraria minha mãe, se ela ia sofrer muito, se eu tinha dito pra alguém alguma coisa de que me arrependia, se alguém se importaria, se era isso, já fiz tudo que tinha pra fazer, acabou.

- Dá seu celular, dinheiro, tudo que tiver de valor.

Não vou dar meu celular. Se ele não mostrar a arma, não dou meu celular. Não vou dar nada que é meu pra um folgado qualquer, por qualquer motivo que ele ache que tenha. NÃO.VOU.DAR.

Olhei bem nos olhos dele. Guardei bem o rosto dele. Olhos grandes e castanhos, cílios grandes. O rosto em forma de triângulo invertido, traços suaves, três pintas pretas na bochecha esquerda, pele da cor de brigadeiro. Maior de idade, com certeza. Mais baixo do que eu. Uma bicicleta cinza, com algum detalhe em vermelho, provavelmente as rodas. Não vou te dar nada. Vou te bater, você vai cair e eu vou embora.

Tirei o dinheiro da carteira sem tirar a carteira da bolsa. Segurei o dinheiro na mão. Alguém gritou "tá acontecendo alguma coisa aí?". Não me mexi. Não tirei os olhos da mão do bandido. "Tá precisando de ajuda?" Não respondi.

- TÁ ACONTECENDO UMA COISA SIM, E SE NÃO CALAR A BOCA, EU MATO ELA!

Foi um segundo. Ele tirou os olhos de mim. A bicicleta só apoiada nas pernas, porque uma das mãos estava no casaco e outra com o dinheiro que tomou da minha mão. Até ele se equilibrar, se mexer, olhar pra mim de novo... Eu corri.

Corri sem olhar pros lados e me joguei atrás de um carro, esperando som de tiros. Não ouvi nenhum. Não fiquei esperando. Corri pra dentro da academia, pra trás de outro carro, onde fiquei até que alguém veio me tirar de lá.

Enquanto isso, a pessoa na janela que me perguntou se eu precisava de ajuda pediu socorro e várias pessoas correram pra ajudar, mas ele já tinha fugido. Eu não vi ninguém, só escutei os gritos. E de repente alguém me segurando e dizendo "já passou", carregando pro sofá mais próximo.

4- eu não tenho que ficar feliz porque ele levou ~só~ dinheiro e pouco dinheiro.

Ninguém olhou pelo lado da pessoa que mal conseguia respirar de nervoso. Pode não ter tido arma nenhuma, mas eu ouvi mais de 10 vezes "eu vou te matar". Pode não ter levado meu celular, porque eu me recusei a entregar. Mas se não fosse a distração que ele teve, poderia ter levado tudo, até meu carro. Pode não ter me matado, mas matou meu sossego de andar pela rua, ainda que movimentada, durante o dia.

Meu estômago doía tanto que eu mal conseguia respirar e tudo que eu ouvia é "pelo menos não levou..." qualquer coisa. NÃO. VOCÊ NÃO ESTÁ CERTO. Eu não deveria ter sofrido violência nenhuma, em lugar nenhum, em hora nenhuma. Eu não deveria ser ameaçada enquanto atravesso uma rua. E não tem muito pra onde correr: entre minha casa e o trabalho são 8 quadras e a academia está no meio do caminho. Não é como se eu nunca mais precisasse passar por ali.

Por favor, parem de dizer "pelo menos" e qualquer bobagem. Podia ser pior, óbvio que podia. Mas foi ruim o suficiente. Pelo menos é o cacete.

*****

Assim que recobrei o controle sobre meu corpo, fui até a unidade de polícia que fica no bairro, no mesmo raio de 8 quadras. Várias viaturas, vários policiais disponíveis. Como todas as vezes em que fui a uma delegacia, senti como se eu estivesse incomodando. Pode ser só a situação, que sempre é delicada, mas eu acho que quem lida com pessoas fragilizadas tinha que ter um pouco mais de tato.

Descrevi o que aconteceu, esperando a hora em que me perguntariam de detalhes que pudessem identificar o bandido. Nunca aconteceu. Perguntei o motivo.

- não faz diferença, porque não vamos procurar.

Não vão mandar uma viatura, não vão nem fingir que estão interessados, não vão fazer nada. Porque ele não me machucou, não levou nada identificável. Eu me pergunto pra que serve então um boletim de ocorrência.

- Pra estatística.

Não é reconfortante? Não sei se é a gente que assiste seriado demais e acredita que alguém realmente se importa, que existe um interesse público em tirar ameaça da rua. Mas não, ninguém se importa. Você está sozinho e não tem ninguém com quem contar. Você é só estatística.

PELO MENOS não é de gente que morreu em assalto, né?

(E eu, sinceramente, não quero mais falar sobre isso.)