quinta-feira, 23 de julho de 2015

cê num tinha nem que tá aqui



Eu não queria fazer carteira de motorista. Nunca quis.

Meus pais começaram a me ensinar a dirigir com 14 anos (ê, anos 90 véio sem portêra), porque achavam que isso dava independência pra pessoa e pra mulher. Dar, até dá mesmo, né? Uns 5 anos atrás eu lembro das minhas amigas (todas com 30 ou mais) desesperadíssimas porque não sabiam ir pros lugares de ônibus, não sabiam pegar táxi, não sabiam dirigir. MIGAS, assim não dá pra te defender! Mas o dia o marido de uma passou mal, o carro na garagem e os dois esperando o táxi na portaria porque a miga não sabia dirigir. E aí? Faz o que?

No fim das contas, fui fazer minha carteira de motorista aos 20, e ela só chegou depois de 3 exames no detran. Acho que era todo meu eu em negação com a situação.

Também nunca sonhei ter carro. Tipo "quando eu tiver um carro, tudo vai ser melhor na minha vida". Com a carteira na mão, meus pais viviam me botando de motorista pra qualquer lugar que a gente fosse, pra ~pegar prática~. Mas, meldels, que saco que era ter que ir de um ponto a outro no universo com o "acelera, freia, acelerou cedo demais, abriu a curva demais, pisou na embreagem muito antes". Você reflita aí o tipo de indivíduo que fica com o zóio no seu pé da embreagem, só pra encher o saco.

Um dia eu tive um momentinho histérico e gritei "QUEM TÁ DIRIGINDO É QUEM? QUER APERTAR A EMBREAGEM NO SEGUNDO EXATO, DIRIGE VOCÊ" e foi uma maravilha a liberdade que veio em seguida.

Mas o resumo é que carro nunca foi uma coisa importante na minha vida.

Aprendi bem cedo que indo de ônibus ou metrô, eu não tinha que saber o caminho. Pra uma pessoa com sérias dificuldades de localização, saber só a) onde eu desço e b) como eu chego daí no meu destino, facilitava DEMAIS a locomoção. Depois veio a fase da bicicleta, que era como andar à pé, só que mais rápido. Curtia muito antes dos 18 e também depois dos 18, especialmente pra pequenas distâncias, que eu sabia percorrer andando.

Até os 20, eu andava predominantemente à pé, de ônibus e de bicicleta, nessa ordem. Eu andava demais. Mais de 10km por dia. Eu não trabalhava e minha única obrigação era chegar na hora na faculdade. Não via razão pra me locomover de outra maneira.

Aí, minha vida teve uma reviravolta: eu comecei a trabalhar, a faculdade mudou o meu curso de matutino pra noturno sem opção de troca ou reclamação, tudo virou um pesadelo. Eu tinha que acordar muito cedo pra ir pra academia, sair correndo pra trabalhar, sair correndo pra faculdade, pegar um ônibus no centro da cidade depois das 22h e correr do ponto até em casa, caso não morresse de violência no terminal. Foi uma época horrível, mas logo eu me formei, só pra me lascar trabalhando na região metropolitana ao mesmo tempo que fazia uma especialização. Quatro ônibus pra chegar no trabalho antes das 7h. Mais três pra chegar no centro de Curitiba pra faculdade às 19h. Mais dois pra chegar em casa às 23h. Nessa época eu poderia ter inventado a expressão "queria estar morta".

Me revoltei, fugi pro Guarujá, tentei virar hippie e fazer dreads e, sendo isso 100% verdade, dá pra imaginar que não fui muito bem sucedida. Vinte dias depois, estava de volta em Curitiba.

Acabei conseguindo esse maravilhoso trabalho onde estou enfiada até hoje, menos de 1km de casa. Eu morava perto naquele tempo, moro MAIS perto hoje em dia e a vida parecia ótima por um tempo. Mas sair de manhã com duas mochilas, uma pra viver, outra pra ir pra academia, já não me fazia feliz. Às oito da noite ficar no ponto de ônibus escuro e deserto, apavorada, não me fazia feliz. Correr 6 quadras em ruas escuras e desertas até uma rua menos deserta e esperar outro ônibus por mais 45 minutos não me fazia feliz. Voltei a estudar e sair com 3 mochilas, uma pra vida, uma pra escola, outra pra academia, era IMPOSSÍVEL. Honrar os horários todos, mais ainda. Isso porque tudo isso estava no raio de 1 quilômetro e em distâncias caminháveis. Mas com horários - e segurança - incompatíveis.

Nessa época eu e minha mãe passamos a dividir o carro, as coisas se equilibraram por um tempo, mas um dia esse carro se foi e pof, eu sofrendo porque não conseguia dar conta das coisas todas de maneira eficiente.

Três anos atrás eu comprei meu primeiro carro. Ano 95, porque veja só você se eu vou enterrar meus dinheiro tudo em uma tonelada de metal com 4 rodas. Não vou. Gastei menos dinheiro nesse carro que na minha viagem pra Europa, porque é assim que tem que ser, no meu ponto de vista. E não vou negar que minha vida ficou uns 400% mais fácil pra resolver os dramas do dia-a-dia, nesse 1km² em que eu vivo por praticamente uns 28 dias do mês. Sem zoeira: eu passo semanas inteiras sem sair desse círculo. Botei na minha cabeça que meu impacto no trânsito é pequeno, assim como o espaço que eu ocupo com a minha lata véia estacionada nas 24 horas do dia. A gente conforta a mente como dá, não é mesmo?

Mas se você me perguntar como eu faço pra ir pro centro da cidade, eu não levo 1 segundo pra te responder: de ônibus. Como eu vou pros parques? Andando ou de ônibus. Como eu vou pro shopping? Sempre que possível, DE ÔNIBUS. E no que tem aqui perto de casa eu vou andando mesmo. 

Porque um dia, muito antes de ter carro, eu li uma frase que nunca mais saiu da minha cabeça: você não está no trânsito, você é o trânsito.

E num me venha aqui me chamar de fazedora de colar de miçanga, porque é a mais pura verdade. Se você não estivesse ali com seu carrinho, eram 4 metros a menos de faixa ocupada. Se 40 pessoas tivessem no ônibus, em vez de sozinhas em seus carros, 600 metros a menos. 685, se a gente contar os 15 metros que um ônibus simples ocupa. Vai multiplicando esse povo pelos carros e vai vendo que de um em um, a cidade entope mesmo, né, mores.

De modos que eu desenvolvi uma técnica pessoal de locomoção: preciso ir longe da minha casa e faço questão de ir de carro por qualquer razão que seja? Farei isso em horário fora de pico. Por uma razão bem egoísta que é porque eu não quero pegar trânsito, mas isso só acontece se eu não for o trânsito. Compreende?

A única coisa que eu penso quando eu fico presa no trânsito de um lugar onde raramente eu vou e até dava pra ter ido de ônibus se eu tivesse me organizado direito é:



AHAHAHHAHAHA né?

*****

Então, assim, eu curto muito ter um carro. Sendo mulher e tendo mil coisas pra fazer, facilita muito a minha vida saber que eu posso usar esse meio de transporte pra carregar grandes compras de supermercado, 3 mochilas pra diferentes atividades no mesmo dia, além de gentes e animais, em caso de necessidade. Não vou desestabilizar ninguém falando do dia em que minha gata ficou doente e nenhum táxi aceitou me levar com ela pro hospital veterinário, levei mais de 3 horas pra achar alguém que me levasse e ela morreu no meio do caminho, porque, né? Vai parecer que a vida é ruim demais. Então o resumo da história é que eu acho carro importante pra alguns momentos da vida da pessoa SIM.

O que eu não sou é dependente do meu carro, nem de carro do ano, nem de carro da marca X. Eu curto muito meu carro que ninguém nem reconhece de tão velho que é, que tem a gaiolinha de metal em cima de 4 rodas, que me carrega pra onde eu preciso ir, com tudo que eu preciso dentro.

Mas se eu vou em um dos três supermercados perto de casa, por exemplo, eu pego meu carrinho de véia que vai na feira, ando até lá, compro as coisas e levo pra casa arrastando minha linda comprinha. Se eu tenho que ir num lugar onde não tenha estacionamento, eu deixo meu carrinho em casa. Se eu vou pra algum lugar depois do trabalho e existe trânsito ou ônibus fácil ou dificuldade de estacionar, EU VOU SEM CARRO já pro trabalho de manhã. Tá fresquinho, mas não tá gelado? Eu vou de bicicleta. Eu só não vou trabalhar andando, porque isso comeria 20 minutos preciosos do meu sono e nada que diminua meu sono é aceito na minha vida. Fora isso, eu sou a favor de usar a inteligência - e não o piloto automático - pra decidir como eu venho e vou.

*****

Quando eu fui pra Europa, fiquei meio abobalhada com o sistema de transporte como um todo. Andar por Dublin e ver que onde passa ônibus tem uma faixa exclusiva, mesmo que a rua seja estreita e mesmo que não seja hora de pico, me deixou até confusa. As pessoas não fazem as espertinhas quando a faixa tá vazia? Não que eu tenha visto. E o trânsito trava? Não que eu tenha visto. Cheio de gente andando pela rua, especialmente no centro. E nem calçadão era, rua normalzona mesmo. "Ah, mas lá é Europa". É sim, miga, mas as coisas funcionam lá por alguma razão, né? 

Daí fui pra Londres, pra ver motoristas reclamando do pedágio do centro da cidade. Mas quando eu ANDEI no centro da cidade, foi muito maravilhoso. Quando eu usei o transporte público no centro da cidade, maravilhoso igual. Fui pro bairro equivalente à avenida paulista e a estação cheia de gente, mas os trens passando um atrás do outro, ninguém apertado. Todo mundo sentado? Não, né. Mas todo mundo dignamente distribuído.

Foi assim por onde eu andei: ruas cheias de gente andando, muita bicicleta, muita gente MESMO no transporte público, mas nenhum momento de falta de dignidade. E os carros lá, empurrados pra um cantinho, pra quando você precisa de verdade. No meu caso, nas duas vezes que andei de carro foi pra me deslocar do ou para o aeroporto. Mais porque eu estava cansada (na primeira vez) e perdida (na segunda vez) do que por necessidade real mesmo. Da hotel pra estação de trem que me levaria pra outro país, fui andando. Chegando no outro país, do trem pro hotel andando de novo. Faria isso aqui? Sem dúvida, se não tivesse medo de me matarem ou roubarem minhas malas no caminho. Só essa restrição. Andar pela cidade num dia comum, eu sempre ando, não tenho nenhum problema com isso e até prefiro.

Pensa comigo: se eu moro a 8 quadras da academia e estou justamente indo me exercitar, qual é o tamanho da incoerência de percorrer esse trecho de carro? Eu acho enorme. Às vezes eu vou? Sim. Durante o inverno, escurece muito cedo em Curitiba (antes das 17:30h) e eu continuo voltando perto das 20h pra casa, num guento mais ser perseguida na rua, ser assaltada e minha mãe indo na polícia da rua de casa. Aí eu vou de carro que é melhor pra vida de todo mundo. Mas fora isso eu não vou não.

*****

Logo que eu voltei da Europa, conheci um pessoal meio radical da bicicleta. Gente que não usa carro, que fala mal de quem usa carro, que acha que o mal do universo é o carro. Se você leu direitinho até aqui, você já sabe que eu não concordo com essas pessoas. Mas tem muita gente inteligente e querida nesse meio, então parei pra escutar o que eles diziam. Isso somado ao meu sentimento de que eu sou o trânsito e etc, me levou a pensar: e agora, a gente faz o que?

Nesses últimos anos, cada vez mais eu conheço gente que vendeu ou abandonou o carro. E você me diz "mas em Curitiba é fácil, o ônibus aí funciona, a cidade é arborizada, tudo é razoavelmente perto", então eu te respondo: meus amigos adeptos da bike como estilo de vida.......... moram todos em São Paulo. TODOS. Tenho amigos ciclistas aqui, que vão trabalhar de bicicleta e fazem o máximo possível de atividades sem carro, tenho sim. Mas um pessoal mais meio termo, que tem um carro guardado na garagem pros dias de chuva. E todo dia surge mais alguém que aboliu o carro. A coincidência? Fica todo mundo mais feliz e de boas.

Primeiro eu fui me perguntar: esse povo tá certo? Depois eu me dei conta que eu mesma nem dou tanta bola pra carro assim.

Aí aconteceu um monte de coisa junta e eu resolvi estudar mobilidade urbana no mestrado. Parecia meique um sinal, porque 600 coisas aconteceram ao mesmo tempo e foi como se eu não tivesse saída. 

Cê me pergunta: ué, mas você não queria estudar isso? Migos, vivendo num mundo onde o mimimi semanal gira sempre em torno de "que desgraça, diminuíram a velocidade da via", "que horror, pintaram uma ciclovia nova", "tiraram estacionamento, botaram ciclofaixa pras moscas andarem", "faixa exclusiva de ônibus é o anticristo" e etc, cê acha mesmo que eu queria essa dor de cabeça na minha vida? Ainda mais na engenharia de produção, onde todo mundo parece ser devoto da santa indústria automobilística, e se você fala que tem que ver isso aí, as pessoas choram e chamam a mãe, imediatamente.

Eu não queria não.

Mas foi a missão que o cosmos escolheu pra mim nessa jornada (hahaha) e eu só quero dizer pra vocês que o ódio já está instalado no meu coração. Mal comecei e perdi as contas de quantas vezes escutei que sou hippie, que quero quebrar o Brasil, que minha alma de humanas está aparecendo, essas coisas bonitas que todo imbecil fala sem saber do que tá falando.

O mais divertido é ver a classe média-alta sofredora falando que precisa de carro sim, porque como que vai andar de ônibus e ser prático? Como vai andar de ônibus e ter conforto? Como vai viajar daqui pra sei lá onde? 

Olha, gente, é tanta idiotice que eu tô duvidando da sanidade mental humana.

Como eu disse no feici ao falar desse assunto: o mundo acadêmico é onde a gente deve supostamente viajar na maionese, pra achar um jeito real de resolver as coisas, porque na vida ninguém muda só porque sim. Pensa que foi nesse mundo que uma pessoa um dia descobriu que dava pra tratar infecção com BOLOR, cara. Agora pensa se tivesse essas âncoras na vida do cara pra dizer "tio, cé loco, vai usar mofo pra fazer remédio? tá usando droga?". Porque é assim que eu me sinto quando digo que a gente precisa rever o uso do carro na sociedade contemporânea.

Se eu passar muito tempo sem entrar em contato, verifiquem aí se não fui queimada numa fogueira.

Enquanto isso, reflitam aí nos seus cérebros se você é o trânsito (e vive pra reclamar disso) ou se você é uma pessoa legal, inteligente, que planeja sua vida, mora perto do trabalho, dirige em horários mais suaves e vai ser o humaninho que resiste quando a próxima fase da evolução chegar.

:*