sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

down the memory lane

parte I

(Não que eu esteja aqui publicamente me comprometendo com a parte II, eu nunca lembro de fazer a outra parte desses negócios que vêm na minha cabeça.)

aquela forma física causada por uma parte do organismo morrendo, ou "eu, aos 9 anos".

Na minha casa, a gente sempre tenta jantar com o maior número de familiares possível, porque é a única hora do dia que tem mais que duas pessoas em casa. A gente estava lá comendo deliciosas delícias ôntiônti, com a tv movida à antena de bombrill ligada no Jornal Nacional, alguma reportagem citando fatos históricos acontece, minha mãe lembra de uma coisa, outra, outra, começamos a falar sobre meu irmão ter chegado em casa da maternidade exatamente no dia da posse do Collor. 

Isso não tem importância nenhuma pra história [da minha família] hahaha.

*****

Então eu comecei a falar sobre coisas que meu irmão não lembrava, já que ele é 10 anos mais novo que eu e a gente normalmente ainda leva uns 5 anos pra começar a guardar memórias e tal. Coisas sobre a minha infância e a da minha irmã antes de ele nascer. Coisas depois de ele ter nascido, mas que nunca se lembraria. Ficamos quase uma hora rindo dos absurdos, tipo o dia em que meu irmão dormiu à tarde pela primeira vez na vida e minha mãe quase chorou, porque ele tinha quase dois anos e nunca tinha dormido mais de duas horas seguidas e eu e minhas amigas resolvemos """cantar""" ~aquela~ música da Deborah Blando nas alturas e minha mãe veio desesperada mandar todo mundo calar a boca antes do uivo final.

Depois de um tempo, minha mãe falou com muito amor no coração "nossa, Vanessa, você geralmente só tem memória ruim, nem acredito que tá lembrando só de coisa boa". ¬¬

E eu fui explicar que as memórias "ruins" são mais engraçadas, geralmente. E eu normalmente só reclamo dos retards que fizeram da minha vida um pesadelo quando eu era criança, mas em casa, minhas memórias são predominantemente boas.

Não sei o que aconteceu, sério mesmo, não lembro como foi que a gente virou da palhaçada pra catástrofe - e eu tenho certeza de que não fui eu - e minha mãe começou a falar de um tempo que começou a dança das escolas comigo e minha irmã (teve um ano em que eu estudei em QUATRO escolas diferentes hahaha). E me disse que me trocou de uma escola que eu amava pra uma outra bem menor e ~exclusivíssima~ - minha sala tinha apenas cinco alunos e nenhuma sala tinha mais que 12 - porque minha irmã era meio desinteressada pelas maravilhas da educação e precisava de atenção total pra gastar seus preciosos minutos com a escola. Eu dou razão pra ela:  nessa época eu tinha 10 anos e ela 5, que coisa horrível ter que ir pra escola com essa idade.

*****

Foi nesse mesmo ano que meus pais descobriram que meu rim estava morrendo lentamente desde que eu nasci. Eu estava passando as férias de verão na casa da minha avó e um dia eu não comi. Me ofereceram até brigadeiro e eu não comi. Me deixaram de castigo porque eu não comi e não podia entrar na piscina e eu nem reclamei. Me deixaram ir pra piscina porque eu tava muito baixo astral e, depois de nadar por uns 20 minutos, eu dei um grito de horror tão horroroso que meus pais só me pescaram lá de dentro e levaram pro hospital, onde o médico descobriu que alguma coisa estava MUITO errada com meu rim e eu vomitei o que eu não tinha comido por horas. Minha mãe me disse que eu passei a noite no hospital e eu sinceramente não tenho nenhuma memória desse fato. No dia seguinte, voltamos pra São Paulo e começou a maratona até me abrirem, verem que o rim não tinha salvação, consertarem o que dava e eu ir viver. Três meses disso, dois deles indo pra escola normalmente.

Cêis já ouviram aquela história que cólica de rim supera a dor do parto? Pois é, isso é pra quem tem pedra. De acordo com meu médico, minhas dores eram dez vezes piores que uma cólica de pedra. OUSSEJE. Passei mais noites no hospital nesse período do que consigo contar. E às vezes era na escola que essas cólicas aconteciam e minha mãe tinha que me buscar correndo e levar pro hospital. Eu ficava alguns dias meio destruída, melhorava e levava a vida até acontecer de novo.

Na semana anterior à minha cirurgia eu estava relativamente bem. No hospital toda hora pra exames, acabava que tava sempre medicada, tava sossegada. Numa dessas tardes de relativo sossego, fui pular amarelinha no fim da rua, onde tinha uma amarelinha permanente pintada no asfalto. Todas as ruas do condomínio eram sem saída e a amarelinha era bem no cantinho. As poucas vagas que ficavam ali eram ocupadas por pais que trabalhavam o dia todo, não tinha perigo nenhum. Eu estava de costas pra rua, pulando, a rua vazia. VAZIA. Um dos milhares de retardados que moravam naquele condomínio (daqueles que faziam da minha vida um pesadelo, como eu disse antes), estava andando de bicicleta na minha rua, apesar de a rua dele ficar bem longe da minha. Em vez de virar antes e voltar por onde veio, em vez de dar a volta na amarelinha (a rua é larga, cabem mil bicicletas), em vez de fazer alguma coisa útil da vida, esse imbecil esperou eu pular com as pernas abertas e veio pra cima de mim com a bicicleta. As rodas bateram no meio das minhas pernas e o guidão bateu nas minhas costas bem na altura do meu rim. Eu não escutei ele vindo (surda), não esperava ser atingida por nada, porque a rua estava vazia até dois minutos antes, caí com a cara no chão. Quando eu caí, ele passou com a bicicleta por cima de mim e das minhas costas. PARABAINS.

Fiquei com medo de contar pra minha mãe (10 anos, gente. 10 anos) e chorei na rua até parar de doer, fui pra casa, fiquei quieta, passou e de noite eu fui dormir me sentindo bem. Fui normalmente pra escola no dia seguinte, onde tive a pior cólica de todos os tempos. Senti a dor começando (se você nunca teve uma cólica de rim, tente imaginar como se um gancho te fisgasse pela cintura e fosse te rasgando de dentro pra fora). Tentei arranjar uma posição pra ficar na cadeira, mas a dor passou de horrível pra insuportável em menos de cinco minutos e eu não conseguia parar de gritar, nem abrir os olhos e eu caí da cadeira e comecei a me debater no chão e ninguém sabia o que fazer porque nunca tinha sido assim tão horrível. E cada vez que alguém me encostava eu gritava mais ainda, porque era como se eu estivesse sendo flechada por todos os lados, então não dava pra me ajudar a levantar, não dava pra fazer nada.

Em 1991 não tinha celular, só quero lembrar todo mundo disso.

Alguém lembrou que eu carregava remédio na mochila, trouxe água, pegou o comprimido e eu lá tentando respirar, sentar, engolir ao mesmo tempo, tomei o remédio e a dor passou pra um estágio em que eu consegui pelo menos sair da sala pra que a aula continuasse, pra ir berrar por outros lados. Ligaram na minha casa por horas, da primeira aula até a última e ninguém atendia. Não tinha como encontrar minha mãe. Não sei a razão de nenhum gênio ter ligado no trabalho do meu pai, de repente ele dava um jeito, pegava o carro de um amigo, SEI LÁ, alguém salvaria a criança, né? Ninguém chamou ambulância, nada. Não consigo nem imaginar uma idiotice dessa nos dias de hoje. Só sei que eu fiquei no chão da secretaria me contorcendo e gritando até a hora da saída.

Quando minha mãe finalmente chegou, eu estava rouca, roxa, com as mãos destruídas de tanto apertar as unhas nas palmas, acabada, querendo só morrer de uma vez praquilo acabar. Ela estacionou na frente do portão da escola, e eu, com toda a finesse que aquela manhã me proporcionou, perguntei:

- ONDE A SENHORA ESTAVA A MANHÃ INTEIRA QUE NÃO ATENDEU O TELEFONE?

HAHAHAHAHAHHAHA

Gente. Eu sei. Só eu sei a dor que eu senti, mas reflitam sobre uma criança de 10 anos falando nesses termos com a mãe, se fosse minha filha eu matava. Fui ouvindo a bronca da escola até o hospital, foi delícia os gritos com aquela dor. Obviamente não tenho a mais remota lembrança de como esse dia acabou, porque provavelmente doparam até a minha alma. Alguns dias depois, meus pais pagaram todo o karma, porque meia hora depois que eu entrei em cirurgia, meu avô morreu e meus pais tiverem que me deixar no hospital assim que eu acordei pra irem ao velório a 400km dali. Não fiquem bravos com eles. E eu passei 10 dias no hospital e ele não conseguiram nem voltar a tempo de me buscar, meu outro avô que fez isso. 

E aí eu estava contando essa história pro meu irmão, que tinha mais ou menos um ano na época do ocorrido (a festa dele foi uns dias antes dessa desgraceira toda aí e eu fiz a cirurgia na semana seguinte) e dizendo que toda vez que alguma coisa em mim dói eu lembro desse dia pra parar de reclamar.

Aí minha mãe interrompe e diz:

- o pior você não sabe. A resposta pra sua pergunta naquele dia era shopping. Eu tava no shopping.

AHHHHHHHHHHHHHHHAHAHAHAHAHAHAHAHAHHAHAHAHAHAHAHHAHAHA

Quase caímos os três da cadeira de tanto rir. E eu tinha razão: as histórias mais trágicas são sempre as mais engraçadas, quando todo mundo sobrevive no final :P

É apenas muito amor essa família ♥