sexta-feira, 7 de outubro de 2016

conto

A manhã tinha sido ruim. Planos desfeitos, almoço improvisado. Escolheu o local pra comer baseando-se apenas em dois critérios: a possibilidade de batata frita e de olhar de forma infrutífera o mesmo moço que senta na mesa ao lado há anos e com quem nunca trocou palavra.

Preferiu o prato de macarrão com frango à milanesa, porque se o dia estava desafiando a programação pré estabelecida, não se prenderia nem mesmo à sua vontade de comer batata.

Avistou o moço de sempre na fila do restaurante ao lado.

Sentaram-se em mesas adjacentes, como sempre.

Ruborizaram - porque a esse ponto as presenças são mutuamente percebidas - mas não se olharam.

Perdeu-se em pensamentos sobre o ridículo da situação, quando foi interrompida por uma voz grave, que saía de trás de uma bandeja de praça de alimentação:

- você me dá licença de sentar aqui?

Aquiesceu.

O dono da voz era um senhor velhinho, vestido como um senhor velhinho em dia de folga - a calça e a camisa sociais, (des)combinadas com uma jaqueta esportiva. O traje condizia com a formalidade ao pedir pra dividir a mesa. Nos dias de hoje, é demais esperar qualquer "tem alguém sentado aqui?" antes que a pessoa invada aquele microcosmos de duas-mesas-quatro-cadeiras. Nas mãos, o senhor trazia na bandeja amarela um prato de fetuccine ao sugo, acompanhado de uma garrafinha de cabernet sauvignon.

Não pode deixar de notar a graça do contraste do prato com a bandeja. Da garrafa de vinho de rótulo bonito com a tacinha de plástico característica das melhores praças de alimentação.

Tem alguma coisa sobre pessoas que ingerem álcool nessas praças. É um pouco triste vê-las em posse de copos de meio litro de cerveja em pleno horário de almoço, na companhia de um prato de linguiça com batata frita. Contudo, há um certo fascínio na imagem de um bom vinho harmonizado com o prato de comida. Mais ainda se são escolhas de um senhor velhinho. Que histórias estão por trás desse momento? Que tipo de vida tem uma pessoa que compra um prato de fetuccine e acompanha de um cabernet sauvignon em um início de tarde chuvosa, numa quinta-feira à tarde, no meio de outubro?

A essa altura, percebeu que se esquecera do moço da mesa ao lado. Mas quem é que se importa com a beleza alheia quando se está na presença de uma pessoa que deve ter uma infinidade de boas histórias pra contar?

Indagou-se qual seria a etiqueta para mesas compartilhadas. Será que poderia iniciar um colóquio. E, em caso afirmativo, como começar? O que perguntar? Parecia angustiante a inércia diante de tamanha oportunidade.

Arrependeu-se antecipadamente da atitude que não tomaria.

Lastimou sua própria história, não ter tido esse avô. Esse senhor especificamente ou outro com a mesma configuração. Entristeceu-se. Pensou em seus próprios avós e agradeceu tê-los (mesmo já não os tendo mais). Reconheceu que graças a eles chegara até ali. Perguntou-se quanto do que se é vem a ser produto do que veio antes. Seria aceitável lamentar sua história? Seria a mesma, não fosse o que a levou até ali? Como se tornara a pessoa que era hoje e não se reconhecia naqueles que viveram antes?

Pensou por um momento que a toda pessoa deveria ser designado um avô extra: um avô filosófico. Nem sempre o indivíduo se identifica com as pessoas de quem ele vem. Todos deveriam ter a oportunidade de desfrutar da companhia de um avô que fosse um baú de histórias e referências, independentes de posicionamento julgamento religioso, político, filosófico, alimentar e sexual de seus netos. Um avô que tivesse histórias frutos de uma vida vivida, em vez de uma vida lutando pra sobreviver. Um avô com quem se pudesse conversar sobre livros, filmes, quadros, músicas e acontecimentos. Sobre harmonização de molhos e vinhos. Sobre tardes de chuva e a vida antes dos tantos prédios, carros, internet e da companhia que os smartfones nos fazem na hora da refeição.

Sentia o olhar curioso do senhor velhinho. Estaria evidente o afã de interagir? Mesmo assim, não desviava os olhos do próprio prato. Do macarrão com molho de queijo acompanhado de refrigerante, que nem de longe teve o mesmo cuidado na escolha de sua combinação. Percebia o olhar interessado do moço da mesa ao lado. Talvez devessem todos se soltar das amarras sociais, sorrirem uns para os outros, convidarem-se para dividir a mesa. Perguntariam os nomes dos convivas, o que os levara até ali. Ririam. Os mais jovens impressionar-se-iam com a sabedoria do mais velho. Ficariam todos com as almas mais leves ao participar desse pequeno momento, de forma casual, inesperadamente. Alguém olharia o relógio e exclamaria o adiantado da hora. Levantariam-se sorridentes, caminhariam juntos até a saída, desejando um dia produtivo, um bom restante de semana. Alguém diria que deviam repetir esse encontro, talvez na semana seguinte, quem sabe. Seguiriam seus dias, cada um com dois novos amigos.
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Emergiu dos próprios pensamentos. Estava de volta à realidade. Aquela em que não se moveu, que não arriscou, que nada fez. Era incontestavelmente observada por dois homens, um jovem, outro velhinho. Pediu licença ao senhor para retirar-se da mesa. Ele pareceu satisfeito em encontrar uma jovem que ainda se importa em devolver a cortesia com que foi tratada. Passou pelas mesas, bandeja em punho, com destino ao depósito de pratos usados. Foi acompanhada pelos olhos do moço da mesa ao lado, que também pareceu arrancado do breve momento de entretenimento.

Seguiu para a saída. Solitária. Tomou a chuva torrencial que caía lá fora. Aproveitou as gotas que corriam sobre seu rosto para chorar disfarçadamente pelas oportunidades que não aproveita, pessoas que não conhece e riscos que não corre.