(but mostly cry)
Eu sempre repito as mesmas histórias, geralmente como piada. Nasci na favela. Só tinha dinheiro pra arroz com salsicha. A vida foi difícil mais vezes do que eu posso contar. Minha saúde é, no mínimo, desafiadora. Tenho órgãos faltando. Meu cérebro não funciona direito. Sofrendo e fazendo graça.
O problema é que isso impede que as pessoas entendam a gravidade da situação. Tem gente pra quem o humor é uma forma de processar, o que não faz da vida menos difícil.
Eu já existia na casa no Piraporinha quando meus pais se alimentavam de arroz, feijão e mortadela, mantinham um alarme de tampas de panela amarradas em um barbante e eram frequentemente assaltados à mão armada na porta de casa.
Daí em diante, a família teve vários altos e baixos, com alguns baixos MUITO baixos.
Quando eu tinha 12 anos, minha vida mudou completamente da noite pro dia. Num dia eu tinha mãe e pai em casa e vivia num condomínio cheio de outras crianças, uma vida normal de criança. No dia seguinte meu pai morava a 450km de distância, minha mãe passava 10 horas por dia na faculdade, eu não conhecia ninguém da minha idade, vivia literalmente trancada em casa, ninguém gostava de mim na escola porque eu tinha vindo de outra cidade. Quando não tava cuidando de outras duas crianças ainda menores, tava absolutamente sozinha por horas a fio. Numa realidade onde não tinha computador, internet, tv a cabo. Tinha um monte de livros e louça pra lavar.
Na cidade onde os mercados funcionavam das 8 às 12 e depois das 14 às 18, APENAS EM DIAS ÚTEIS, minha mãe não tinha tempo disponível pra comprar comida entre uma aula e outra. Num determinado dia, depois de três semanas sem que meu pai pudesse ir até a nossa cidade, a comida acabou. Era dia de aula integral pras crianças, eu tinha que fazer almoço só pra mim. A culinária é bem limitada com verba curta e com 12 anos de idade, mas eu sabia usar fogão e panela de pressão, o que já me colocava bem à frente das pessoas da minha idade NOS DIAS DE HOJE. Mas naquele dia o que tinha era arroz cru e um potinho de molho de tomate na geladeira.
Cheguei da escola, refoguei o arroz, esquentei o molho, juntei tudo e fiz um risoto. Ficou MUITO ruim e eu voltei tudo pra panela pra temperar de novo, mas não tinha jeito, deu errado. Sem opção, fui comendo com muita má vontade. Quatro garfadas depois, tocou o telefone. Era meu pai.
- filha, você tá almoçando o que?
- eu fiz um risoto, mas tá ruim.
- como que você fez um risoto? O que você colocou?
- só o molho que tava no potinho bege.
- VANESSA, NÃO TEM MOLHO DE TOMATE EM CASA!
- eu peguei o potinho bege que tava na gaveta...
- minha filha, isso é goiabada!
Na hora teve graça e quase sempre essa história é engraçada. O famoso risoto de goiabada. Meu pai me disse onde tinha um tantinho de dinheiro guardado e me fez prometer que eu ia parar de comer imediatamente e ia sair pra comprar comida no mercadinho do bairro. Sabendo que eu tenho extrema dificuldade de localização até em lugares familiares, imagino o desespero em me mandar pra rua numa cidade em que eu não tinha decorado nem como ir e voltar da escola ainda, mesmo que fossem sete quadras em uma linha reta, onde eu me perdia quase que diariamente. Num universo sem telefone celular, sem google maps. Ele me fez contar "na esquina, vira à esquerda, anda sete quadras, vira à direita, mais duas quadras". Minha rua era sem saída, só tinha um sentido pra começar. Mas tinha que explicar a volta também, porque meu cérebro não sabe voltar por onde veio. Eu fui, comprei comida e pão pra mais tarde, quando as crianças chegassem. Voltei pra casa, fiz outro almoço. Comi. Liguei pro meu pai pra avisar que fui e voltei viva, comprei sim, comi sim.
O que eu nunca mais comi foi risoto, goiabada, molho vermelho. Nem ketchup eu consigo, porque o adocicado no tomate me remete àquele gosto desgraçado, que nunca mais foi apagado da minha mente. Hoje em dia eu como algumas coisas que têm molho como ingrediente, tipo parmegiana, desde que o restaurante me garanta que é feito de tomate fresco. Se houver uma gota de molho industrializado na minha comida, ela vai ficar no prato. Em nenhuma hipótese eu como macarrão com molho ao sugo, é impossível. Com tanta coisa que eu não como, a maioria das pessoas nem percebe. Em casa, de vez em quando rola um macarrãozinho com molho de tomate caseiro, mas eu trato de tacar um milho, um creme de leite, alguma coisa que disfarce e mude o gosto. Não existe a menor possibilidade de eu ingerir novamente nesta vida risoto, goiabada, molho vermelho.
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Quando a gente tem defeito na cabeça, alguns dias são melhores que os outros. Esses dias eu descobri o termo "passing", que é quando você é tão GESONEL - O MESTRE DOS DISFARCES que as pessoas nem notam que tem alguma coisa muito errada com você.
Mas tem dias que são uma merda.
Fazia pouco mais de uma semana que eu tava no limite do controle emocional, por diversas razões. Mas tava levando. Pra quem olhava de fora, 120% passing. Mas ontem as consequências de ser uma pessoa com dificuldades de comunicação começaram a pesar e logo cedo as coisas foram dando errado tipo dominó. Eu respirei fundo na primeira, contornei a segunda, pulei a terceira tal qual o bonequinho do pitfall, me abaixei enquanto a quarta quicava por cima da minha cabeça. E aí eu fui almoçar. Em meia hora, 25 coisas erradas aconteceram e, quando eu finalmente encontrei um restaurante pra comer, eu escolhi uma massa cujo molho habitual é sugo, porém repeti tal qual uma desequilibrada pra atendente que o molho tinha que ser funghi, que eu pagaria a mais pela troca do molho, mas que em nenhuma hipótese podia ter molho de tomate no meu prato. Ela anotou meu pedido, me deu um comprovante que eu conferi - eu sempre confiro, porque nunca na minha vida eu pedi uma comida como uma pessoa normal - e sentei pra esperar. Quando meu prato chegou e eu vi as conchinhas boiando naquele líquido pastoso vermelho, eu fiz a única coisa que a pessoa que está sem a posse do diploma das faculdades mentais poderia fazer: botei as duas mãos no rosto e chorei. De soluçar. Por muitos minutos.
Eu não conseguia comer (eu tentei, mas colocar o garfo com aquele molho na boca foi uma tortura), eu não conseguia devolver, reclamar, aceitar que um prato inteiro de comida seria jogado fora, que a moça que me atendeu ficaria chateada por ter errado o pedido, que alguém na cozinha levaria uma bronca, que alguém teria um prato descontado do salário. Chorei. E continuei a chorar.
Enquanto eu chorava no meio da praça de alimentação, minha mãe pediu pra embalarem o prato com o molho de tomate e fazerem outro com o molho certo. A dona do restaurante viu meu desespero e foi me pedir desculpa pelo erro, enquanto eu tentava explicar que tava mais preocupada com a comida no lixo e a punição dos funcionários, mas falhava miseravelmente na missão de falar. No fim, me garantiram que ninguém seria punido e eu "ganhei" o prato novo e pude doar o errado. Mas aí, meu bem, Inês já era morta, minha cara já tava vermelha e inchada em pleno horário de expediente. Comi a comida certa - que tava realmente muito gostosa - agradeci todo mundo pela paciência com meu descontrole, catei meus cacos e fui trabalhar com aquela cara de quem levou 38 picadas de abelha. Felizmente, ninguém cometeu a indelicadeza de comentar.
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Muitas horas depois, quando eu já tinha tido tempo de me acalmar e organizar meus pensamentos, eu consegui explicar o que aconteceu - e acontece com uma relativa frequência, além da extrema dificuldade de me comunicar, que é uma coisa que realmente me abala. Toda vez que existe um prato de comida na minha frente contendo molho vermelho, é como se eu estivesse novamente diante daquele primeiro risoto de goiabada. E, junto com ele, vem uma enxurrada de memórias de tempos muito difíceis. Por mais que eu tenha uma coleção de momentos extremamente difíceis na minha vida, aquele é um dos que pesa mais. O molho de tomate na minha frente é viver aqueles dias outra vez. Em alguns dias eu só respiro fundo e sigo, em outros eu choro, porque não dá pra suportar.
Só é uma pena que a gente seja assim tão complexo, porque quem é que está esperando um indivíduo desabar na frente de um prato quentinho e fumacento da macarrão recém preparado?
Tá aí um texto com uma infinidade de caracteres pra provar que não é simples explicar porque é que a gente perde o controle da vida já na segunda-feira, mesmo que momentaneamente, diante de um simples prato de comida.