sexta-feira, 14 de junho de 2013

v de vinagre


Quando você se muda de cidade no meio da vida, você entra numa dinâmica curiosa: depois de um tempo, a cidade nova é sua casa. Mas, ao mesmo tempo, toda vez que você vai à cidade onde cresceu, também sente como se estivesse chegando em casa. Só que em alguns momentos é como se você não pertencesse a nenhum dos dois lugares.
Agora, por exemplo, que a cidade em que eu cresci passa por dias que parecem cenário de guerra, eu não estou lá e não sei como proceder. Por um lado, eu tenho que explicar pra outras pessoas que, como eu, também não estão lá [e diferente de mim não têm laços afetivos com o lugar] por que eu me importo. E por outro, por mais que eu me importe, eu não tenho muito que fazer pra ajudar.

Tem gente que acha que não precisa se preocupar porque não mora em São Paulo. Porque não conhece ninguém em São Paulo. Porque não usa o transporte público em São Paulo. Tem gente que não entende que não é por vinte centavos que as pessoas estão protestando. Isso é um reflexo da economia que atinge quem está lá, quem conhece alguém de lá e atinge você, que é brasileiro e cidadão, em qualquer lugar onde você esteja. 


O que acontece lá é um reflexo da política que é praticada no país inteiro onde você mora. Dizer que acha que a polícia tem mesmo é descer a bala e bater nos “baderneiros” é autorizar a mesma polícia a te tratar assim no dia em que você estiver lutando por uma causa que te atinja “mais diretamente” ou até mesmo quando você estiver andando na rua, cuidando da sua vida. Dizer que esse povo é um bando de vândalo que tinha mais é que parar de atrapalhar o trabalhador e a cidade, é legitimar o poder do governo de abusar de você, do seu dinheiro e dos seus direitos. Todos os seus direitos.


Eu me preocupo com o que acontece em São Paulo porque a forma como as coisas vão se resolver dá o tom de como o país vai andar. Em algum momento, já foram chamados de baderneiros aqueles que foram pra rua reclamar da opressão, da ditadura e garantiram o direito que eu e você hoje temos de votar, de participar ativamente na escolha de quem nos representa, de nos encontrarmos com mais de 5 pessoas por vez. Ainda que a maioria possa acabar escolhendo governantes que causam esse tipo de situação que São Paulo vive essa semana, a escolha é nossa e – ainda – temos direito de protestar quando ela dá errado. Também já foram chamados de baderneiros aqueles que saíram em defesa de toda a nação, com os rostos pintados de verde e amarelo, pra que nós todos, eu e você, pudéssemos nos livrar de um presidente corrupto e tivéssemos direito de viver em um país melhor. Se hoje eu me sinto um pouco triste por não poder sair do trabalho às 17h e ir me juntar aos manifestantes que ainda não desistiram, é porque eu prefiro ser a pessoa que está lá lutando por um país melhor pra todo mundo do que ser a pessoa que senta na frente da tv, acreditando em notícias tendenciosas, gritando de dentro da minha sala que tem mais é que sentar a porrada nesse bando de desocupado mesmo. Isso em tempos em que é só abrir uma página na internet e ver os dois lados. Eu quero ser a pessoa de quem os descendentes têm orgulho. “Minha avó estava lá lutando contra esse absurdo.”

Se eu me preocupo com o que acontece em São Paulo, não é por que o transporte está 20 centavos mais caro ou porque meu pai mora lá, ou porque minha irmã está passeando lá ou porque eu tenho amigos jornalistas, fotógrafos, publicitários, advogados, manicures, bancários, vendedores, estudantes e desempregados que estão protestando ou passando pelo centro por qualquer outra razão. Eu me preocupo porque em São Paulo estão milhões de pessoas. Pessoas que eu não conheço. Pessoas como eu e você, que se sentem desrespeitadas pelo governo e pela situação econômica do país.

Hoje eu não posso pegar um avião e dar a mão pros meus amigos que estão protestando. Eu não posso combinar de encontrar meus amigos que planejam sentar na Avenida Paulista até que a população seja tratada com mais respeito. Eu não posso comprar um frasco de vinagre e me juntar a outras tantas pessoas com essa arma perigosíssima que só serviria pra me defender. Mesmo que eu estivesse em São Paulo, eu talvez não pudesse me dar ao luxo de me expor à possibilidade de contato com gás lacrimogêneo com a minha saúde tão estragada. Talvez eu não pudesse me dar ao luxo de arriscar apanhar de cassetete ou levar um tiro de borracha, porque eu só tenho um rim. Talvez fosse estúpido arriscar a minha vida me expondo à violência quando a minha intenção e a das milhares de pessoas à minha volta seria totalmente pacífica. Talvez fosse estupidez arriscar tanto assim a minha vida, mesmo sabendo que o problema também é meu. E é possível que mesmo assim eu fosse.


Porque não importa onde eu esteja, em Curitiba, em São Paulo ou em qualquer outro lugar. Não interessam minhas condições de saúde. Não interessa o quanto o problema me afeta diretamente. Mas se eu não posso ir pra rua, pra cantar, andar e protestar pacificamente pelos meus direitos, eu posso, no mínimo, expor o meu apoio pra quem está lá. Eu posso acreditar que minha opinião consiga convencer do contrário ao menos uma pessoa que acha que não tem nada a ver com isso ou que a manifestação está errada. Eu posso chamar a atenção de quem se recusa a ler os inúmeros relatos de quem estava lá, de quem viu de perto e de quem não tem compromisso nenhum com a política de veículos formais de informação e não tem razão pra mascarar os acontecimentos. Eu posso fazer propaganda das pessoas que estão orgulhosas por terem ido além do protesto de sofá. Eu posso pedir pros meus amigos se cuidarem, por favor, enquanto cuidam da cidade que deveria estar no coração de todos nós.