menina, façavor de se dar ao respeito!
Eu sei
que tem gente que vai questionar o timing desse post, mas considerando que
neste exato momento em que eu edito esta frase aqui em cima faz um mês que eu
tô escrevendo, não fiquem se preocupando que não é recado pra ninguém.
Temos
vivido um tempo em que todo mundo é tão extremista com relação às coisas que
acredita que o convívio social presencial ou pela internet está ficando
impossível.
Eu nunca
dei muita bola pra feminismo. Cresci numa casa onde cada um lavava sua roupa, o
pai sabe cozinhar, a mãe sabe arrumar chuveiro, todo mundo faz um pouquinho
aqui, um pouquinho ali e todo mundo faz parte das tarefas de manter a casa
funcionando.
Nunca fui
proibida de vestir cor nenhuma, de ter cabelo de qualquer tamanho, de brincar
de carrinho, de ter bicicleta azul, de ter um GI Joe, uma Barbie, vídeo game,
mini game, brinquedos de cozinhar, kit de chave de fenda, esquadros, bola,
cabaninha da Branca de Neve, ursinho, skate. Tenho um irmão que pediu uma blusa
cor de rosa pra minha mãe e ela costurou do jeito que ele queria. E ele podia
usar na rua e na escola. E nunca se importou com a opinião dos amiguinhos.
Também teve cabelo comprido, tingido, pintou o olho de lápis preto por anos,
lava as próprias roupas e sabe cozinhar. Tão entendendo o processo? Eu cresci
numa casa em que as pessoas são respeitadas nas suas vontades e iguais nas
obrigações.
Ninguém
nunca diz “pai, tem que trocar o gás”. As meninas vão lá e trocam. Ninguém diz “mãe,
tem que lavar a louça”. Os meninos vão lá e lavam. Todo mundo na minha família
sabe onde fica o sabão e o martelo.
Mas a
gente não vive na bolha do lar e um dia eu estava entre pessoas que eu
considerava modernas. Até que alguém veio me tirar do repouso de uma doença
séria - que vou omitir pra preservar minha paz e ninguém se reconhecer - pra
reclamar que eu estava deitada enquanto um homem lavava a louça e todo mundo
sabia que era uma HUMILHAÇÃO um homem ter que se sujeitar a isso.
Cê jura?
Nesse
mesmo ano, pela primeira vez na vida, eu comprei roupas pra mim. Até ali minha
mãe comprava roupas e a gente ia usando, todas as meninas juntas. Sei lá se era
preguiça, pobreza, falta de senso fashion. O caso é que ela comprava as roupas
todas e a gente usava (eu, ela, minha irmã) sem muito critério. Foi quando eu
ganhei a incrível fortuna de 300 dinheiros pra gastar como quisesse, desde que
fosse em roupas e foi a primeira vez que eu pude pensar a respeito do que
gostaria de usar.
Cresci
esquelética. Nunca tive orgulho disso, era apenas o formato do meu corpo. E
minha mãe, que também tinha crescido magricela, sempre teve vergonha das pernas
finas, dos ossos salientes. De modo que sempre comprou roupas largas. Então,
minha primeira compra continha apenas vestimentas justíssimas. Calça jeans
grudada na pele. Camisetas infantis, pra ficarem completamente coladas. Blusas
daquele tricô tão bizarro que ela parece 8 números menor que o seu quando você
não está dentro dela. Eu não queria mostrar o corpo, queria só usar roupas do
meu tamanho, pra variar.
E foi a
primeira vez que eu me dei conta de como mulher é um tipo imbecil de ser
humano, quando uma coleguinha da minha sala na faculdade veio me avisar que não
era de bom tom sair de casa com uma camiseta que não cobrisse o bumbum. E o
pior: eu acreditei. Tinha acabado de mudar de cidade, de estado, de nível
escolar. Vai que eu passei tempo demais no interior e perdi a noção, né? Fui lá
de novo comprar um lote de blusas com 4 vezes o meu tamanho, só pra que cobrissem
meu derriére e ninguém fosse agredido pela visão do meu bumbum seco.
Depois
foi com decote, maquiagem, esmalte, cabelo. Era o tempo todo censura pela
aparência. Se falasse com os meninos, cesura no comportamento. Se fosse na
festa de fulano, se olhasse, se pensasse, se respirasse. Todo mundo julgando
você o tempo todo.
E foi só
aí, atravessando a barreira dos 20 anos, que o feminismo bateu à minha porta. E
eu resisti, porque eu sempre tive essa noção radical que um gênero não precisa de
vantagem em relação ao outro. Mas aos 30 eu percebi que acreditar que todo
mundo é igual estava muito errado e eu entendi que não, eu não sou feminista,
nem machista, só um tanto egoísta. Eu não acredito em direitos iguais, eu não
acredito em superioridade. Eu acredito em necessidades especiais. Eu acredito
em direitos especiais.
Vou
explicar.
Eu não
acho que eu sou MAIS que um homem apenas por ele ter nascido homem. Obviamente
não acho um que um homem seja mais que eu em nenhuma situação. Mas eu também
não sou IGUAL a um homem.
Eu não
sou igual a um homem quando eu saio da barriga da minha mãe e imediatamente
todo mundo acha que devo vestir rosa, mas se um bebê menino se aproxima dessa
cor, um pai morre de ataque cardíaco fulminante.
Eu não
sou igual a um homem quando eu entro numa loja de brinquedo e peço um soldado
em vez de uma boneca e uma vendedora muito fofa me diz que a seção de meninas é
ali ó. E um homem não é igual a mim se cai na desgraça de desejar uma boneca.
Eu não
sou igual a um homem quando fico menstruada pela primeira vez na escola, no
meio da aula e o professor de história não sabe como lidar e a diretora me
repreende por ter falado a respeito no meio da sala, com um homem, na frente
dos meninos. Como se o que aconteceu comigo não fosse obra da natureza, que
acontece com metade da população e independente da minha vontade.
Eu não
sou igual a um homem quando fico menstruada todos os meses na escola e tenho
que fazer as aulas de educação física com as primeiras cólicas da minha vida,
que nem eu mesma consigo entender como funcionam, sob o sol, porque o homem que
me dá as aulas diz que menstruação não é desculpa.
Eu não
sou igual a um homem quando tenho que passar uma semana inteira fora da piscina
e usando roupas escuras no verão, porque ninguém me explica muito bem como
passar aqueles dias e a sociedade não aceita saber que me encontro nessas
condições.
Eu não
sou igual a um homem quando começo a sair à noite e tenho que ouvir meus pais
dizendo pra jamais deixar meu copo sozinho, que não posso beber demais, que não
posso sair com aquela saia de jeito nenhum, que tenho fechar o decote, que
tenho que me dar ao respeito, senão os meninos vão saber que eu não valho nada
e terão automaticamente direito sobre meu corpo.
Eu não
sou igual a um homem quando resolvo que vou sair de saia se eu quiser e vou rir
se eu quiser e vou falar com quem eu quiser e um deles acha que isso significa
que eu estava me oferecendo a noite toda e pode praticamente arrancar meu lábio
ao forçar me beijar. E se revolta quando leva uma bofetada no meio da cara como
resposta, porque eu.estava.pedindo.
Eu não
sou igual a um homem quando não posso voltar desacompanhada pra casa à noite,
porque alguém pode querer me machucar apenas por ser naturalmente mais forte do
que eu.
Eu não
sou igual a um homem quando gosto de futebol e de outros esportes, porque isso
me masculiniza e nenhum menino vai querer uma menina assim tão desleixada e com
as canelas roxas.
Eu não
sou igual a um homem quando cada vez que eu me relaciono com alguém do sexo
oposto, eu sou automaticamente a pessoa que está se insinuando. Se o homem for
comprometido, eu sou automaticamente a destruidora de lares.
Eu não
sou igual a um homem quando chego aos 25 anos sem um relacionamento
significativo com uma pessoa do sexo oposto. Eu não sou igual a um homem quando
a sociedade me expulsa repetidamente de grupos sociais em que todos acabam
comprometidos depois de um tempo, porque tem alguma coisa errada com uma mulher
sem homem. Sem alguém pra proteger, cuidar dos interesses sociais e das rédeas
da vida em geral.
Eu não
sou igual a um homem quando escolho estudar um curso tipicamente masculino e tanto colegas como professores me perguntam
se minha intenção é arrumar um marido e se tenho alguma ideia de como usar uma
calculadora científica com 50 botões.
Eu não
sou igual a um homem quando escolho uma profissão tipicamente masculina e
ninguém respeita minha autoridade pela única razão: ter nascido menina.
Eu não
sou igual a um homem 3 semanas no mês, quando meus hormônios tomam o melhor de
mim e eu tenho que controlar cada reação. Eu não sou igual a um homem quando
meu corpo dói sem que eu tenha feito nada pra que isso acontecesse. Quando não
posso controlar meu humor. Quando sinto dores que um homem JAMAIS vai
experimentar e não tenho o direito nem mesmo de fechar a cara, de respirar mais
fundo e até mesmo de chorar, por que não? Eu não sou igual nem mesmo às
mulheres nesse momento, porque algumas iluminadas nasceram mais aptas para a
sociedade e não sofrem com a mesma intensidade e acham que podem julgar a minha
experiência pela delas.
Eu não
sou igual a um homem se decido que meu corpo é meu e eu faço dele o que eu
quiser. Inclusive expondo a maior extensão possível da minha pele, se me der
vontade. E isso não quer dizer que eu esteja me exibindo ou pedindo ou querendo
nada.
Eu não
sou igual a um homem se decido que não quero procriar. Eu obviamente não brado
contra os homens nem acho que gravidez seja violência ou qualquer outra dessas
ideias perturbadas. Eu só acho que não quero a experiência nem a
responsabilidade. Se um homem decide que não quer ter filhos, é só a opinião
dele, uma escolha dele e mulher nenhuma vai deixar de se juntar a ele
emocionalmente por causa disso. Se uma mulher decide que não quer ter filhos,
ela é louca, frustrada, rebaixada, incompleta, invejosa. E nunca, NUNCA a
sociedade entende um homem que se junta a esse ser mitológico incompreensível. Essa
mulher que vai contra a natureza.
Eu não
sou igual a um homem se decido que não quero me casar, que não quero dividir
uma casa, um quarto, uma cama, um cobertor, uma conta bancária. A sociedade
duvida da minha sexualidade – que a propósito, não é da conta de ninguém – e da
minha sanidade mental se eu me recuso a me ligar a alguém de forma tão profunda
apenas porque.eu.não.quero. Um homem que passa a vida sozinho é um solteirão
independente desejado. A mulher que passa a vida sozinha é uma coitada que
ficou pra titia.
Eu não
sou igual a um homem quando eu engravido contra a minha vontade. [Um parêntese
aqui: eu sou moralmente e pessoalmente contra o aborto. Mas essa sou eu, sobre
a minha vida, a única em que eu posso opinar. Socialmente, eu acho que todo
mundo tem que ter direito de fazer o que achar melhor.] E eu sinceramente acho
que um homem que não esteja envolvido genética e diretamente no processo de fabricar
a criança em questão, não tem direito de opinar no rumo da gravidez.
Eu não
sou igual a um homem se eu divido uma casa. Ainda que o homem não esteja
romanticamente envolvido comigo, se eu e um homem moramos no mesmo lugar, a
obrigação de limpar, cozinhar, arrumar, é socialmente minha. E eu, enquanto
viver, jamais lavarei as roupas de outra pessoa que não sejam as minhas. Limparei
a bagunça de uma pessoa que não for eu. Cozinharei qualquer coisa que eu não
esteja interessada em comer fora da hora que me interesse comer.
Eu não
sou igual a um homem se eu tenho filhos. Desconsiderando o fato de que
biologicamente eu sou a única que pode alimentar a criança pelos primeiros 6
meses, todo o resto também será minha responsabilidade. As fraldas, a
alimentação, as broncas, as roupas, a higiene, o colo. Se meu filho fica
doente, sou eu e não o homem que pede pra sair do trabalho pra levá-lo ao
médico. Se a nota é baixa, sou eu e não o homem que recebe a ligação da escola.
Se a roupa está amarrotada, sou eu e não o homem que leva a fama pelo desleixo.
Eu não sou igual ao homem quando preciso faltar ao trabalho por 3 dias porque
meu filho não melhora. Sou eu o alvo das fofocas de escritório sobre a falta de
comprometimento com o trabalho. Sou eu que tenho apenas 4 ou 6 meses de licença
maternidade, mas sou cobrada constantemente pela atenção que deixo de dar à
criança, que ouço palpites sobre alimentação, educação e todas as outras
tarefas que não tenho a quem delegar.
Eu não
sou igual ao homem quando cresço aprendendo que não posso andar por ruas
escuras, que não posso andar sozinha à noite, que não posso andar por ruas
desertas em nenhum horário do dia, que não posso demorar pra travar a porta do
meu carro depois de entrar nele, que não posso usar roupas curtas e justas se
for usar o transporte público, quando a sociedade passa minha vida me ensinando
que não devo ser estuprada, em vez de ensinar aos homens que eles não devem
estuprar.
Eu não
sou igual ao homem quando qualquer coisa sobre meu comportamento pode me
classificar como santinha ou como safada, como puritana ou vagabunda, como pra
casar ou pra comer.
Eu não sou igual ao homem quando as outras meninas todas também estão me julgando pelo que não querem ser julgadas, pelas minhas roupas, pelo comportamento que elas acham que eu deveria ter, pela forma como elas acreditam que uma mulher deve ser.
Então me
digam: pra quê eu quero direitos iguais aos dos homens? Eu nunca vou ser tão
forte, eu nunca vou ter as mesmas habilidades, modos de raciocínio. Eu não sou
igual e não quero ser igual. Eu quero ser respeitada pelo que eu sou. Não quero
que alguém role os olhos e solte um suspiro se eu disser “não posso fazer isso
agora, estou quase cega de cólica e preciso de uma hora até que meu remédio
faça efeito”. Eu quero que a pessoa REALMENTE entenda o que eu estou sentindo e
volte uma hora depois, sem me tratar como um indivíduo inferior ou mágico por
causa disso.
*****
E eu
ainda tenho sorte. Eu sou uma mulher heterossexual revoltada, independente e
com ideias não convencionais. A vida já não é fácil, mas não consigo imaginar o
que homens e mulheres homossexuais passam apenas por não serem... iguais. Todo mundo
palpitando demais em situações que não lhes dizem respeito. Se cada um cuidasse
só dos próprios interesses (de verdade, e não daqueles que você ACHA que são
seus, como o casamento entre duas pessoas em que uma delas NÃO É VOCÊ), todo
mundo teria muito mais chances de ser feliz.
Eu entendo
o feminismo. Entendo a importância dele. Entendo o que leva as meninas da minha
geração abraçarem tão fervorosamente. Mas eu não sou feminista. Eu sou egoísta.
Eu quero o que é melhor pra mim. Não porque eu sou mulher, não porque eu acho
que mereço mais que ninguém. Eu só acho que mereço respeito, independente do
gênero de cada um. Independente da forma que eu me comporto, desde que não
afete DE FATO a vida de ninguém. Você deveria querer também.
PS - 01 DICA: ser uma menina bradando por respeito enquanto julga o comprimento da saia da coleguinha NÃO ESTÁ PERMITIDO.