quinta-feira, 14 de setembro de 2017

ik vind je aardig


(este não é um post triste)


Eu sempre fui uma criança tranquila. Mas eu nunca fui uma criança comum. E, talvez por não saberem exatamente como lidar comigo, os adultos estavam sempre me deixando de castigo.

Eu vivia de castigo.

Pelas mais variadas razões. Teve um ano, especificamente, muito ruim. Eu tinha 8 anos e meus pais estavam me criando numa religião que não era a católica. Eu nem sabia que era diferente de ir à igreja, porque todo mundo falava de Deus e tal, mas eu tava toda semana no equivalente à catequese. Só que eu fui passar um tempo na casa da minha vó, no interior. E como toda boa vovó de interior, a minha também era católica, apostólica, romana e tinha a necessidade de me mandar pros eventos da igreja enquanto eu estivesse por lá. Um dia, o padre falou alguma coisa sobre a bíblia que não era o que eu tinha aprendido nas minhas aulas de religião. Eu era uma criança. Eu tinha 8 anos. Eu não sabia lidar com desencontro de informações. Contestei que eu não tinha aprendido daquele jeito e o que o padre fez? Falou que existem interpretações para a bíblia e a que eu conhecia não era a mais adequada? Que ele acreditava que a dele era mais precisa, com base em sua experiência empírica? Que eu poderia dizer como eu aprendi e nós discutiríamos onde estavam as diferenças? 

HAAHHAHAHAHAHAH NÃO.

Ele me chacoalhou, gritando que eu deveria parar de falar besteira e me derrubou no chão.

Todo mundo sabia que eu era a criança paulistana com educação duvidosa, ninguém interveio. Eu me recusei a permanecer naquele ambiente e fui embora pra casa, muito machucada. Chegando lá, contei o que tinha acontecido e quem ficou de castigo fui mesmo eu. "Porque você é impossível, Vanessa, nem o padre aguenta". 
Mas não foi só isso!

Eu tinha ido pra igreja com a minha vizinha, a criança modelo da casa da frente. Quando a mãe dela me viu entrando em casa, se perguntou por que raios a filha dela não tinha chegado junto. E em vez de ir cuidar da própria cria, foi até a casa da minha vó perguntar onde a menina estava. Expliquei que saí antes da igreja porque o padre me bateu. Então além do castigo por provocar o padre, eu fiquei de castigo por propagar o assunto e deixar a menina voltar desacompanhada pra casa.

*****

Outros castigos vieram.

Eu não entendia muito bem a relação de causa e efeito entre ir à piscina gelada no meio do verão e ficar doente. Então eu ficava de castigo só por pedir, por exemplo. Isso é pra todo mundo entender que eu não era uma criança bagunceira, arteira ou impossível - no sentido comum de criança impossível. Eu era psicologicamente impossível, então minha repreensão era sempre em forma de tortura psicológica também.

Mas nada como viver na inquisição.

*****

Naquele mesmo ano - lembrando que eu era uma criança que ainda não enchia duas mãos pra identificar a idade - eu recebi uma cartinha de um menino. É claro que a gente não pode controlar o fato de ser a parte RECEPTORA de uma carta, mas na mente problemática dos meus cuidadores, se uma menina é objeto de afeição de alguém é porque ela PERMITIU. 

No momento em que a carta foi entregue, fui interceptada pela pessoa que foi me buscar na escola, dizendo que queria saber o conteúdo do que estava escrito. Como eu disse, eu era uma criança muito tranquila e garanti que todo adulto responsável poderia ler, DEPOIS que eu lesse. Não fui atendida. O veredito era que eu só poderia ler se um adulto autorizasse. Eu não sabia o que estava escrito na carta, mas sabia que a) era "romântico" e b) era PRA MIM. Então, se eu não podia ler primeiro, ninguém leria. Comi a carta. Fiquei semanas de castigo depois desse momento.

*****

O transtorno com o padre foi só o primeiro de uma série, que passou pela carta comida e teve um grande rastro ao longo da minha vida. Cinco ou seis anos depois, eu vivia mais tempo no castigo que fora dele, eu já nem saberia dizer qual era o ~normal~. Na maior parte das vezes, por problema religioso mesmo. Mas qualquer coisa era motivo.

Normalmente eu não tava nem aí pras coisas que eu "perdia". Até o dia em que foi anunciada uma viagem de férias pra Europa, para a qual eu não fui convidada. A viagem era de motivação religiosa, englobando Portugal, Espanha e Marrocos. E se eu não era católica, então não tinha nada o que fazer lá.

Realmente, fazer uma viagem caçadores de missa não me interessava nem um pouco. Mas era a Europa e eram igrejas e eu AMO igrejas, até o dia de hoje - em que eu continuo sendo NEM UM POUCO CATÓLICA - eu adoro visitar igrejas em todas as cidades e países aonde vou. Alguns meses antes, tínhamos visitado Ouro Preto e as igrejas do aleijadinho, e eu tinha conseguido fazer o passeio ser bom mesmo ignorando as vibe de missa, de modos que eu fiquei profundamente chateada de ter sido deixada pra trás na viagem pra Europa. Pra ser bem sincera, eu sou TÃO TROUXA, que eu acreditei até o último minuto que alguém ia gritar PEGADINHAAAAaaaaAA e me mandar arrumar as malas.

Não aconteceu.

Fiquei um mês de babá de gato, com férias absolutamente sem graça na frente da televisão, bastante chateada.

Meus primos, que fizeram o requisito, voltaram da Espanha se recusando a falar português. Foram semanas falando um portunhol desgraçado, contando como o país era incrível e blá bla´blá bla´bla´bla´bla´b a´lb abláblábl´, adoraria enfiar essa viagem no cu? Além disso, como a maior parte da viagem aconteceu lá (na Espanha), todos os nossos presentes estavam escritos em espanhol.

Agora você veja: eu garrei ÓDIO dessa língua.

ÓDIO.

Eu já estava estudando inglês e italiano por conta própria fazia algum tempo e minha escola estava começando a oferecer aulas de espanhol. Eu sempre adorei aprender línguas diferentes, já estudei também francês, holandês, alemão, galês. Sempre tive facilidade pra compreender a língua que eu quisesse. Mas, naquele momento, deu-se um bloqueio TÃO GRANDE que eu fui incapaz de aprender uma palavra que fosse em espanhol. Claro que a gente entende uma coisa ou outra, porque é tudo muito familiar. Mas eu sempre fiz cara feia pra músicas, filmes, livros e qualquer tipo de texto em espanhol. Foi uma vida me recusando a me relacionar com essa língua. 

Acontece que foi só uns dois meses atrás que eu encontrei de onde vinha essa aversão. Minha família tinha viajado e eu resolvi mudar de quarto na minha casa. Eu estava sozinha e pude desmontar dois quartos inteiros com calma, passar as coisas de um lado pro outro com paciência, abrir todas as caixas que eu quisesse pra decidir o que ficava e o que ia pro lixo.

Aí encontrei esse quadrinho aí da baixa autoestima. E foi só nesse momento que se deu todo esse raciocínio, aquele famoso "ahhnnnnn". Foi também quando eu decidi que tá na hora de fazer a Elsa and let it go.

Mas uma birra de décadas não se vai assim com essa facilidade e sem esforço nenhum, não é mesmo?

Eu passei anos fazendo careta cada vez que alguma coisa em espanhol surgia na minha frente, então é um reflexo já enraizado no organismo. É muito difícil refrear a reação quando ela vem. A decisão de deixar o espanhol entrar (ryzas) é muito recente e ainda depende de muita concentração pra não sair reclamando sem motivo. Eu ainda gasto muita energia no processo.

*****

Semana passada eu estava conversando uma conversa tão gostosinha, sabe? A minha guarda tava toda baixa. Num certo momento, falando sobre a vida e os planos, da boca daquela criatura tão bonita, sem que eu esperasse, sai uma frase inteira em espanhol. Os olhos, antes olhando o horizonte, grudaram nos meus. O corpo todo na minha direção. Faíscas. Se você me perguntar quais palavras foram ditas, eu não faço a menor ideia. Talvez fosse uma pergunta, querendo saber se eu falava espanhol também. Jamais saberei. Porque meu cérebro apenas

parou.

Antes que eu pudesse responder, eu reparei que eu não senti repulsa, eu não senti incômodo.

I fell in love.