De vez em quando eu posto algumas coisas no facebook que eu gostaria de desenvolver (um eufemismo pra "usar mais um milhão de caracteres"? Jamais saberemos.), mas sei que ninguém leria ou que acabaria matando o blog. E eu penso "mas todo mundo que lê aqui também lê lá e talecoisa", mas a verdade é que eu acho que as duas rede social não chegam a ter exatamente os mesmos leitores.
Se tiver, reclamem com jeitinho, porque de vez em quando eu vou expandir as bobagens que eu escrevo no feissy por aqui.
Por exemplo, a história do Bozo.
OU
A incrível história de como meu rim subiu no telhado
(O que uma coisa terá a ver com a outra, ó, Senhor?)
Se você ainda não sabe até este presente momento que eu vivo minha vida com apenas um rim, você provavelmente é o único. Desde quando ele se fué, meu médico me ensinou que eu tenho que avisar isso (e minhas alergias) pra todo mundo, no caso de eu passar por uma catástrofe. Ficaria mais fácil me salvar etc.
Bom, o causo é que eu nasci aparentemente normal. Mas já nos primeiros meses de vida, minha babãe - então com 18 anos (o passado era estranho, não?) - percebeu que tinha alguma coisa errada com a criança mais chorona da face da terra. Aliás, desde o útero. Eu não como feijão e minha mãe não pode comer durante toda a gravidez, porque passava mal. Fora da barriga eu também causava um climão maneiro quando mamava depois do feijãozinho de babãe. Mas eu chorava o tempo todo, vinte horas por dia. Passei de vó em vó (eu tinha várias, se contar as bisavós), de tia em tia, de benzedeira em benzedeira. Ninguém descobria qual era o encosto que fazia a criança gastar o pulmão.
Lá pelo meio do meu primeiro ano de idade, minha mãe me levou a 394857 médicos e ninguém achou nada. Vamo aqui lembrar que se tratava do longínquo ano do Senhor de 1981 e ultrassom era uma coisa moderníssima demais pra alguém pensar em usar. De modos que chegaram à única conclusão possível: esquizofrenia.
TACA GARDENAL NA CRIANÇA.
(Se você acha que isso explica muita coisa, saiba que não há confirmação médica ¬¬)
Nem todo o gardenal do mundo me fazia parar de chorar. Os anos foram passando, eu fui crescendo e aos 4 minha mãe engravidou novamente. Segundo ela, porque eu sempre pedia por um irmãozinho. OUSSEJE, eu não estava recalcada por ganhar um bebê novo na família. Até ali, eu era a única neta, bisneta, sobrinha e tudo de um lado da família. MESMO ASSIM eu posso confirmar que não estava enciumada.
Pois bem. Eu era raquítica, nível criança desprovida de nutrientes. Pequena, pançuda e chorona. Se as pessoas me encostassem, em qualquer lugar, eu sentia dor. E choraaaava. Chorava o tempo todo. Botaram a culpa disso na ~perda do trono~. Minha mãe fez questão de dizer que o bebê seria como uma boneca que eu ajudaria a cuidar e eu tava muito diboa com isso, mas se eu chorasse, se doesse, se eu quisesse morrer só um pouquinho, aí a culpa era de ter que dividir a mãe.
Mais um tempo passou e eu estava com 8 anos. Eu sentia dores terríveis nas costas. Mesmo assim, era uma criança ativa: fazia parte do time de ginástica olímpica da escola, fazia todos os esportes do universo, nadava, corria, andava de bicicleta. Mas no fim do dia minhas costas doíam e eu chorava. Chorava miseravelmente. Que saco essa Vanessa. Tem uma vida ótima e só chora, tudo dói. Quem aguenta essa Vanessa?
UMA PAUSA
Ali pelos 7/8 anos, eu acordei um dia com o pé tão inchado, mas TÃO inchado, que não dava pra pisar no chão, colocar sapato, viver. Mostrei pra minha mãe e ela entrou em pânico, saiu correndo e me levou no hospital. Meu pé foi ficando roxo e cada vez parecia pior. No hospital, me levaram pra emergência, tiraram raio-x até da minha alma e não acharam nada. NADA. O médico ficou perplecto (hahaha idiotice nova pro vocabulário), não sabia o que fazer. Concluiu que era uma fissura tão pequena que não dava pra ver direito (1988, gente.). Não quis engessar pra não colar tudo errado, deu mil pomadas e imobilizou com faixa e tala só pra não piorar a situação. Esperamos a semana toda aquele pé voltar a um tamanho humano e, quando isso aconteceu, voltamos ao médico. Com o pé menos inchado, o médico apertou ele todo e em algum lugar encontrou: uma picada de inseto.
Dessa história ficou: Vanessa é tão dramática que até o corpo dela reage exageradamente às coisas simples.
FIM DA PAUSA
Então se eu brincava o dia inteiro, era porque a dor nas costas não era assiiiiiiim tão dolorida. Se eu não brincava o dia inteiro, era porque eu era chorona e pelamordedels, minha filha, para de reclamar.
Aos 9 anos, eu estava na merda. Eu vivia com dor nas costas e não reclamava mais, porque era melhor sentir só a dor nas costas sem ouvir que eu tinha que parar de reclamar e chorar. Mas como toda criança de 9 anos, eu ia brincar loucamente sem medo de ser feliz, até porque eu não relacionava uma coisa com a outra.
Nessa época, eu estudava numa escola de crianças ricas, que tinham tudo o que queriam. E tava na moda um carrinho de carregar a mochila. Eu queria muito um carrinho desses, mas nada que fosse causar um chilique na criancinha. Mas minhas costas doíam DEMAIS e eu não conseguia mais viver, muito menos carregar uma mochila com duzentos mil livros. E o psicólogo ou sei lá quem foi dizer pra minha babãe que era chantagem emocional pra ganhar o bendito carrinho.
PESSOA QUERIDA, VAI CAGAR?
Então eu fiz 10 anos, o ano escolar acabou e eu fui deportada pra casa da minha vó, como sempre era. Minha vó morava numa chácara imensa, com árvores pra subir, rampas pra descer de bicicleta, pomar, rio, cavalo, cachorro, gato, piscina, etc etc etc. Reflita a situação de uma criatura nessa idade nesse lugar. E, sendo eu pequena e magra, lá era o lugar onde sempre podia comer até explodir. Oito pães e duas xícaras de leite com Toddy numa única refeição. Sete pastéis de queijo. Cinco sorvetes de palito. Manga, carambola, maçã, uva, jabuticaba, qualquer fruta que caísse no chão ou que desse pra pegar na árvore. Eu vivia comendo e comendo, como se Magali meu nome fosse.
Mas teve um dia em que eu não quis tomar café da manhã. Então o castigo era não poder ir pra piscina até de tarde. Aceitei. Não quis almoçar. Tentaram forçar e eu vomitei tudo. Disseram que era frescura e fiquei com castigo estendido: sem piscina de tarde também. Aceitei. Deitei na frente da televisão e me disseram que não podia ver tv também. Ok. Fui deitar no quarto, só pra ter sossego e isso provavelmente preocupou alguém, porque eu um dia inteiro sem comer pão ou sorvete e sem infernizar pra andar de bicicleta, subir em árvore, jogar pebolim, ir pra piscina, não fazia sentido pra ninguém.
Foram lá me catar no quarto pra mandar pra piscina e eu fui. Não fiquei nem meia hora lá dentro e pensei que fosse morrer. Sentindo um enjoo horrível e muita dor, eu simplesmente comecei a chorar. Mas não um chorinho suave, eu chorava gritando. Parecia que eu estava pegando fogo, mesmo dentro da água. Parecia que eu estava sendo esmagada por todos os lados. Não sei se minha memória está certa, mas eu lembro do meu pai na varanda, saindo correndo e me catando de dentro da piscina de qualquer jeito, me secando, botando uma roupa e ido com minha mãe me levar no hospital.
No hospital, eu estava fazendo a menina do exorcista. Vomitando pra tudo quanto era lado, sem critério. Quando o médico apalpou a lateral do meu abdome, eu terminei de vomitar o conteúdo do meu eu interior. Minha mãe diz que eu passei a noite no hospital e eu vos digo: depois do apertão no rim, não tenho memória de MAIS NADA até uma semana depois, quando a gente já estava de volta em São Paulo, na sala de uma médica, que dizia delicadamente que aquilo era além da especialidade dela e a gente deveria procurar o médico X, porque ele era o melhor da área.
No tal médico X, uma criatura de extremo tato, meus pais perguntaram "é pedra, doutor?" e ele disse, na minha frente, sem medo de ser feliz "se fosse, seria bom.". NUM É RECONFORTANTE? Vi o desespero no olho dos meus pais e foi a única vez na minha vida que eu não chorei HAHAHAHAHAHAHHAHAHA. E ó que incrível, o negócio era tão complexo que aquele médico também não tava apto pra resolver e lá fui eu pro maior especialista em sistema urinário abaixo da linha do Equador.
Vou pouparlhos dos detalhes, mas meu rim, no fim das contas, estava enrolado nas próprias veias, estrangulado, sem conseguir escoar toda sua ~produção~ por toda minha vida. Estava quadruplicado e a ponto de estourar (viva!), e o procedimento envolveria desenrolar as veias todas e fazer uma plástica no que sobrasse, pra manter as funções.
Entre a descoberta e a cirurgia foram três meses. De exames quase diários, internações infinitas pra resistir à dor (de acordo com meus médicos todos, a pior que um ser humano pode sentir e sobreviver), de intermináveis horas na escola em que eu era autorizada a assistir à aula em qualquer posição que quisesse, porque nem sempre era possível ficar sentada e manter a sanidade mental, de um atropelamento intencional de bicicleta (tenho impressão que de já contei isso por aí), de pânico e desespero, porque eu era uma bomba relógio.
Finalmente o dia da cirurgia chegou (cabou de completar 23 anos, 21 de março) e lá fui eu pro hospital de noite, pra ser operada na manhã seguinte. Um anestesista sem tato adicionado à equipe no.meio.da.madrugada., um comprimidinho pra me deixar vendo gnomos, eu tendo mais uma crise de choro, o anestesista do amor me mandando contar até três, eu chegando em sessenta e chorando porque contar era chato e eles provavelmente considerando me matar ali mesmo, eu enxergando todo mundo ruivo e ouvindo sotaque de Portugal, eu apagando e acordando 8 horas depois, enfaixada do tornozelo até o pescoço, com vontade de ir ao banheiro e com sede, como sempre. Sem poder resolver nenhuma dessas duas coisas e chorando tudo de novo. E uma senhora cicatriz que me atravessa os flanco. E eu acho linda, viveria de cropped top se a barriguinha permitisse.
Dormi e acordei duzentas vezes até o dia seguinte, quando eu descobri que não tinha sido possível reconstruir o rim e dali pra frente, eu viveria com um só. Minha família só descobriu recentemente que o tecido do rim não foi totalmente retirado, mas feito um tipo de saquinho com uma parte da pele, pra conectar as veias todas, pra que o sistema urinário não sentisse o trauma com tanta força. Isso que sobrou não tem nenhuma função a não ser enganar o organismo. Pois se você perguntar pra algum deles se é verdade que eu tenho só um rim, eles vão dizer que não HAHAHAHAHA. Ô gente insuportável, não para de perturbar nem a pessoa deficiente física, porque aquilo NÃO.É.UM.RIM, é uma conexão feita de pedaços de rim e tal, mas não serve pra nada.
Eu adoraria que servisse.
Bom, agora vamos ao ponto desse dramalhão.
Estava eu lá pelo quinto dia no hospital, bem suave na nave, lendo meus gibis (ganhei uns 50 gibis de todo mundo que foi me visitar), sozinha. HÁ CONTROVÉRSIAS sobre a razão pela qual eu estava sozinha. Minha memória diz que meus pais estavam em outra cidade, porque meu pobre pai deu o azar de perder seu próprio pai enquanto a filha estava no hospital, pensa num karma errado. Minha mãe diz que eles já estavam de volta em casa, mas minha avó disse que era melhor ela ficar com meus irmãos pequenos que comigo no hospital. Eu acho que a minha versão é a certa, porque naquela tarde eu estava sozinha, sem mãe, sem vó, sem visitas.
De repentemente, vem a enfermeira saltitante verificar soros e canos e sondas e remédios e o conforto da minha vida em geral, já começa trabalhando na fofoca:
- adivinha de onde eu tô vindo???? Do quarto do Bozo!!1111
E eu me animei instantaneamente, achando que era aquele programa que leva alegria, palhaços ou famosos pra visitar crianças estropiadas e o Bozo e sua turma estariam indo de quarto em quarto animando os pobres remendadinhos. Cabô minha empolgação quando ela continuou a história:
- o bozo usa droga, cheira tudo, tá acabado, nunca faça isso com a sua vida ou você volta pra cá.
Q
Alguém aí sabia o que significava "cheira tudo" aos 10 anos? Porque eu não sabia. E, sendo a criança mais estúpida que já viveu, achei que tinha que contar a história de que o Bozo estava cheirado no mesmo hospital que eu pra absolutamente todas as pessoas do mundo.
- ô, mãe. Manhê. Cê sabia que o Bozo tava no meu hospital?
- é memo, é?
- aham, tava cheirado.
- AI MEU DEUS, VANESSA, TAVA FORTE A ANESTESIA, HEIN?
Se eu tentava de novo, só ouvia o variante "CALA A BOCA E PARA DE FALAR BOBAGEM".
Na escola, eu achava conveniente contar essa história pras crianças. Cuja reação era sempre DUVIIIIIIIIIIDO QUE CÊ TAVA NO HOSPITAL CO BOZO.
E quando essa ibagem apareceu na minha timeline na semana passada, eu só queria poder voltar no tempo e pregar na cara de todo mundo esse credibilíssimo jornal: O BOZO CHEIRAVA TUDO SIIIIIM!!111!1
Alguém aí podendo confirmar a internação no 9 de julho em março de 1991 ajuda muito and I can rest my case.
E era só isso mesmo, desculpa, fim.
♥
PS: Um bebê com o mesmo problema que o meu hoje em dia, pode ter isso reparado NO ÚTERO, antes de nascer. Já aconteceu, meu médico já fez. Ó que maravilha a modernidade do mundo.
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