segunda-feira, 19 de março de 2012

pelo direito de ficar triste.


Eu tenho sorte. Minhas pessoas morrem pouco, morrem de velhas. É uma frase horrível, mas acho que a única coisa que consola a inevitabilidade da morte é pensar na vida de quem morreu. Se foi longa e feliz, ao menos no nosso ponto de vista, é mais fácil suportar a dor da perda. Pelo menos é assim comigo.

O pior da morte é sobreviver a ela. É ter que ir ao banheiro, tirar o lixo, trabalhar, comprar pão. Essas coisas estúpidas que temos que continuar fazendo porque o mundo não acabou e a vida não para. Acho um desrespeito da vida com quem perdeu alguém.

Minhas mortes anteriores foram espaçadas e em circunstâncias especiais, como quando meu avô paterno morreu no dia em que eu estava no hospital perdendo um rim. Sabe? Perdas em perspectiva. Perdas à distância. Perdas de um jeito que eu não sei explicar, mas mais simples de superar, por uma razão ou outra. Perdas que as pessoas compreendem.

Diferente de quando meu cachorro morreu de velho, mas de surpresa. Acordou bem, se sentiu mal, foi ao hospital e morreu. Tudo em menos de 12 horas. Eu, que nunca peço pra faltar ou sair mais cedo do trabalho, pedi pra ir ao crematório. Cinco anos atrás.

No ano passado, quando fui pedir pra faltar três dias pra ir a um congresso internacional, a resposta foi “é até um alívio que o motivo seja esse, vindo de alguém que falta pra funeral de cachorro”. Cinco. Anos. Depois.

Não entendo quem quantifica a dor da perda. Não entendo quem compara. Não entendo quem não entende.

Vinte dias atrás, quando meu avô materno morreu, eu tive que ir a uma reunião de trabalho. Obviamente chateada – porque reuniões são atividades inúteis da humanidade e porque eu queria sofrer em paz – vi quando um conhecido da família avisou meu chefe a respeito. Porque eu nunca aviso, não gosto daquele desejo de pêsames vazio e não gosto de ninguém interferindo no meu processo de dor. Eu prefiro evitar assuntos tristes (e isso é problema meu).

Ao ouvir a notícia, ele veio desesperado “nossa, o que aconteceu com seu pai?”. E quando eu disse que foi meu avô, não meu pai, levei dois tapinhas no ombro, seguidos de “ahh, então não é nada”. Virou e foi embora.

Mas esse foi só o segundo lugar no ranking. Em primeiro lugar ficou a pessoa que ouviu a notícia por outros e não se conteve. “Seu avô morreu? Poxa, eu perdi minha ex-empregada também, a vida é uma coisa triste às vezes”.

Não é incrível a sensibilidade humana?

E eu sou uma manteiga derretida nesse mundo feito de gente com as ferraduras recém polidas. E eu choro porque é triste e eu choro porque as pessoas são idiotas e eu choro porque a louça precisa ser lavada, mesmo que seu coração doa.

A perda que eu sofri essa semana é do tipo que ninguém considera. A perda que eu sofri esta semana é a que eu mais temi em toda a minha vida. Foi aquela que tirou meu sono por antecipação, que me fez pensar duas vezes em um milhão de situações. Foi a que me fez mudar os planos incontáveis vezes, foi a que me impediu de sair de casa, de viajar, de viver despreocupada.

E eu morri um pouquinho quando percebi a inevitabilidade. Eu morri um pouquinho quando virei a general do plano de salvação. Eu morri um pouquinho quando disse quem faria o que, quando gritei, quando arremessei celulares e o que tivesse na minha frente. Eu morri quando peguei um taxi que andava a 2km por hora e morri quando eu cheguei tarde demais e quando eu tive que olhar pela última vez e dizer tchau. Eu, que nunca tenho coragem de dizer tchau.

Eu morri um pouquinho quando meu maior medo virou realidade.

Eu morri um pouquinho e todo mundo superou mais rápido que eu.

E amanhã é segunda-feira e eu tenho milhões de coisas estúpidas pra fazer nas segundas e eu vou deixar metade delas pra lá. Porque é muito injusto que a vida continue, quando meu coração está em pedacinhos.

São Francisco, segura minha mão. E segura a mão do meu amorzinho também.

(E, por favor, não deixa mais ninguém morrer neste ano, porque eu não agüento.)